Wishful Thinking na gripe suína


Se você quiser entender o conceito de wishful thinking (pensamento desejante), basta examinar as declarações do Ministério da Saúde durante a epidemia de gripe.

Primeiro, quando a transmissão sustentada já se concretizava há pelo menos uma semana ou duas, o MS falava que isso ainda não estava ocorrendo, dizendo que todos os casos confirmados tinham vínculo epidemiológico (viagem para o exterior em países com epidemia declarada ou contato com pessoas que haviam viajado para o exterior). Essa afirmativa era problemática por duas razões: a) o número de casos suspeitos já era maior que o de casos confirmados, e portanto nada podia se afirmar sobre tais casos; b) os casos sem vínculo epidemiológico (e que portanto eram evidência da transmissão sustentada) eram colocados na caixinha dos "casos sob investigação de vínculo epidemiológico".

O reconhecimento tardio da transmissão sustentada não preveniu o pânico mas apenas cobrou sua quota de mortes desnecessárias: várias pessoas não foram devidamente atendidas ou receberam Tamiflu porque não apresentavam vínculo epidemiológico, e um pré-requisito para se suspeitar de gripe suína era a existência de tal vínculo.

Agora, parece que o novo wishful thinking é dizer que o pico da epidemia já passou, baseado numa suposta influência da temperatura na dinâmica da epidemia. Isso pode ser refutado por quatro fatos:
  1. Em muitas cidades a epidemia nem começou ainda (por exemplo, Ribeirão Preto tem apenas 60 casos e duas mortes).
  2. O efeito da temperatura e clima é apenas modulador, mas não controla a dinâmica do pulso epidêmico. Esses fatores podem afetar a taxa de infecção, mas não de maneira drástica. Exemplo: no modelo SIRS (clique e brinque à vontade aqui), o número final de infectados é bastante robusto frente a variações na taxa de infecção. O que muda é o formato do pico epidêmico e a localização temporal do pico.
  3. Uma possível diminuição na taxa de infecção produz um atraso no pico epidêmico, não um adiantamento. Ou seja, se realmente o clima diminuir a taxa de infecção, isso implica que o pico da epidemia ocorrerá mais tarde, e não mais cedo, e portanto estariamos ainda na fase ascendente da epidemia, não em seu final.
  4. Um forçamento externo como o clima apenas desloca a fase e modula a frequência da oscilação no modelo SIRS, mas não é responsável pelas oscilações em si. Uma análise detalhada deste fenômeno num modelo SIRS com automata celulares poderá ser encontrada em um paper com minha aluna Ariadne, espero que até o final do ano.
É interessante que a frase "torcer pelo melhor, se preparar para o pior" nos lembra que o simples ato de "torcer" contamina de irracionalidade nossas espectativas. Se alguém torce pelo Corinthians, ele acaba acreditando que o mesmo será campeão, mesmo contra todas as probabilidades e evidências em contrário...


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