Mais um artigo panfletário do Osame Kinouchi
Mais um artigo panfletário e um pouco datado que encontrei limpando meu HD. Mas pode conter algumas idéias ou argumentos interessantes, fica na STOA o registro.
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O primeiro cuidado que devemos tomar é perceber que existe um longo caminho entre uma idéia científica e o uso ideológico da mesma. Ou seja, se idéias científicas são socialmente construídas, muito mais construídas socialmente são as “conseqüências” sociais ou éticas das mesmas. Além disso, o que foi construído pode ser desconstruído. Por exemplo, no século passado, o Darwinismo social constituiu-se em uma ideologia justificadora de práticas racistas, de eugenismo impiedoso e de um capitalismo selvagem. Podemos concluir que, se não quisermos ser eugenistas, devemos nos tornar anti-darwinistas? Não, isso é simplesmente absurdo, porque idéias geram versões as mais variadas, e essas versões são selecionadas pelo contexto sócio-econômico e cultural onde se encontram. As versões que encontram nichos adequados se reproduzem, podendo dominar o espectro ideológico. Mas se o contexto social favorece versões que não gostamos, podemos pensar em selecionar e promover outras versões de uma mesma idéia, politicamente mais interessantes, em vez de simplesmente rejeitar em bloco todas elas.
Não deveríamos rejeitar a priori certas idéias pelo fato de que elas poderiam ser mal utilizadas ou parecerem fundamentalmente contrárias aos nossos sistemas de pensamento. Com o devido esforço de imaginação, que idéia ou autor não pode ser colocado em uma dessas duas caixas de rejeição? Vale sempre a pena lembrar o caso Lisenko, com sua rejeição da “genética burguesa”, que teve conseqüências nefastas que ultrapassaram em muito o simples debate científico-ideológico.
Usando ainda outro exemplo, a idéia de socialismo gerou inúmeras versões, desde o anarquismo místico, pacifista e cristão de Tolstoi até o socialismo real de caráter autoritário e totalitário. O socialismo real não invalida a idéia ou ideal de socialismo na mesma medida em que o mercado real oligopolista não invalida a idéia de um mercado ideal livre (ou “mercado imaginário”) e o Darwinismo Social não invalida a idéia de Darwinismo. Apenas nos diz que idéias (e ideologias) devem ser pensadas e trabalhadas com cuidado, porque não são simples instrumentos passivos mas sistemas auto-organizados, que na sua inserção social podem adquirir uma dinâmica própria, uma relativa autonomia, muitas vezes perversa e que vai além das intenções de seus criadores.
Assim, continua sendo um absurdo dizer que o Atomismo, a Termodinâmica, a Genética, a Teoria da Seleção Natural ou a Teoria da Relatividade são progressistas ou reacionárias, ou de esquerda ou direita, apenas porque foram usadas ideologicamente assim ou assado no passado. Afinal, tudo foi usado ideologicamente por alguém no passado, como qualquer historiografia das idéias pode nos revelar. O caminho entre uma idéia científica e suas possíveis implicações políticas ou éticas é (muito) longo e nunca unívoco. Parafraseando Quine, poderíamos dizer que, com suficiente imaginação e tempo, é possível deduzir implicações ideológicas antagônicas a partir da mesma idéia científica. Ou seja, se existe certa uma sociobiologia conservadora (Wilson), também é possível encontrar uma sociobiologia libertária (Kropotikin; Ridley), algo que aparentemente nunca foi compreendido pela esquerda imaginária. E que nada disso realmente é decisivo quanto à sua validade ou não em termos científicos.
Isso não significa que devemos ser ingênuos e ignorar, ou encobrir, os aspectos ideológicos sempre presentes nas idéias científicas. O que estou querendo sublinhar é apenas o fato de que a primeira pessoa que disse “a sociedade afeta-distorce-configura-limita as idéias científicas” foi uma pessoa muito inteligente; a milésima, porém, que apenas repete isso sem conseguir ir além, não está sendo tão perspicaz assim.
Assim, se o pensamento de esquerda há de ser renovado, é uma tarefa urgente e atual desconstruir alguns dos mitos fundamentais da assim chamada esquerda pós-moderna (por alguns) ou reacionários pós-modernos (por outros). Esses mitos ideológicos simplesmente têm paralisado intelectualmente as esquerdas nos últimos 15 anos. Nenhum avanço será feito enquanto não os reconhecermos e os reduzirmos, dialeticamente, às suas devidas proporções.
O primeiro mito diz que se queremos ser anti-capitalistas, então devemos rejeitar tudo o que os capitalistas valorizam, não importando que idéias ou valores sejam estes. Uma reação meramente topográfica, que busca sempre as antípodas, não importando se este movimento de deriva acabe por nos alinhar com a extrema direita anarquista (libertarians americanos), o fundamentalismo religioso ou as milícias neofacistas, que sempre acharam que a revolução francesa, ou talvez a democracia grega, foram o grande erro do Ocidente.
Vou chamar esse mito de falácia das Antípodas, que pode ser resumido em “o inimigo do meu inimigo é sempre meu amigo”. Infelizmente, este tipo de pensamento tem origens nobres, do super-homem maníaco-depressivo Nietzsche e do “maior filósofo do século XX” e quase ministro da cultura nazista Heidegger, a seus discípulos impregnados do romantismo alemão, Adorno e Horkheimer, Marcuse, Roszack e o admirador das SS Feyrabend.
Quando os capitalistas promoviam o nacionalismo e o etnocentrismo, deveríamos ser internacionalistas. Mas agora, em plena era da globalização capitalista, devemos proteger o nacional e retornar ao étnico. Do mesmo modo, na época em que os capitalistas usavam a religião ideologicamente, deveríamos ser ateus cientificistas. Mas agora que capitalismo promove a racionalidade pragmática e burocrática weberiana, a esquerda imaginária afirma que reencantar o mundo, resgatar as religiosidades tradicionais e destruir o mito científico é a tarefa central. Tarefa central?
Já que a direita elaborou um Darwinismo social no século XIX, devemos agora nos tornar criacionistas (quer sejamos criados por Deus, por um acidente existencial ou pelos ETs), ou então nos entregarmos à última cosmogonia ecológico-espiritualista que aparecer na revista Planeta. A democracia liberal foi outro valor sacrificado segundo essa mesma lógica das antípodas, promovendo, por exemplo, a conversão dos anarquistas seguidores de Sorel em apoiadores do regime de Vichy.
Inúmeros equívocos desse tipo podem ser lembrados, e a cegueira ideológica de tantos intelectuais de esquerda do século XX chega a ser cômica (lembram-se das acrobáticas defesas intelectuais do Stalinismo, da Revolução Cultural e do Khmer vermelho?) se não tivesse sido tão trágica. Mas para quem acha ingenuamente que “não, agora enxergamos melhor, agora não nos enganaremos mais”, basta lembrar a novilíngua do politicamente correto, originária do puritanismo americano de esquerda e que passa a ser adotado pela direita religiosa e pelos censores de plantão. Sem falar do multi-culturalismo americano pós-moderno que fundamenta teoricamente um etno-socialismo, um nacionalismo socialista, e por tabela, um nacional socialismo sempre mais robusto e militante.
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Ora, a falácia da tese que a correlação entre ciência e capitalismo significa mútua causação e sustentação apenas mostra a que nível de indigência intelectual chegou o pensamento da esquerda imaginária. Fica óbvio, a partir da definição de sistemas complexo adaptativos (sistemas de muitos agentes interagindo não linearmente e que “aprendem” a partir de erros) que todas as analogias entre ecossistemas, economias e culturas apenas refletem o fato de que os mesmos são exemplos primários de SCAs. Ou seja, “seguir a mesma lógica” (a lógica dos SCAs) não implica em sustentação mútua. Ou será que o sistema imunológico humano e a hipótese de Gaia, que têm características parecidas a uma economia de mercado (sistemas homeostáticos auto-regulatórios, falta de controle central, etc.) simplesmente por serem exemplos de SCA, também sustentam o capitalismo? Gaia sustenta o capitalismo??? Repetindo, para quem ainda não entendeu: correlação não implica em causação. Ponto.
As ciências da complexidade também nos permitem enxergar que, assim como todo SCA é passível de evolução e revolução, e que todo SCA é robusto justamente por admitir variação e mutação, então as idéias de Fim da História são de uma ingenuidade completa. O sistema de mercados atual realiza apenas um entre muitos dos SCA econômicos possíveis. Variantes de capitalismo existem, que se confundem, no limite, com variantes de socialismo. Utopias se tornariam realizáveis na medida em que as sociedades imaginadas possuissem a condição mínima dos SACs, ou seja, de serem sistemas complexos, auto-organizados, que se adaptam, se corrigem, aprendem com seus erros. E veríamos o fracasso do socialismo real apenas como o colapso de um sistema que não se estabeleceu como um SCA por faltarem os mecanismos de retro-alimentação e auto-correção adequados.
Mas se o pensamento de esquerda também quiser aprender com seus próprios erros, então ele precisa urgentemente deixar de ser apenas crítico, reacionário, romântico e obscurantista, e começar a criar, imaginar, propor novas idéias e retornar às suas origens iluministas e científicas (Engels). Afinal, Ciência, na definição de Feynman e de Habermas, é a arte de duvidar dos experts a partir de boas razões, ou seja, a arte da crítica e do ceticismo maduro. E ser anti-científico é se apegar a idéias caducas (muitas delas provindas de filósofos nazistas respeitáveis) apenas por motivos políticos.
Assim, a tarefa do pensamento utópico e socialista atual é deixar de ser reativo (rumar para as antípodas quaisquer que sejam elas, cultivar a ignorância científica, resistir ao cruzamento e fertilização de idéias) para se tornar ativo, com capacidade de aprender com o passado e pensar novos futuros. E, principalmente, evitar que importantes ferramentas de pensamento sejam monopolizadas pelos poderosos, arrancar os meios de produção de conhecimento avançado (ciência e tecnologia) das mãos dos exploradores e parasitas sociais.
As ciências da complexidade, porém, são incompatíveis com o Mito das Antípodas, o Mito de Frankestein e o Mito do Muro de Berlim Humanista. Elas pedem mais liberdade de reflexão, menos medo de novas idéias, mútua fertilização entre ciências naturais e humanidades. Porém, se ser de esquerda, atualmente, significa sacralizar aqueles grandes Mitos, nunca os expondo a críticas ou reformulações, então a esquerda nada pode fazer com as ciências da complexidade senão ignorá-las, chamá-las de nova ideologia do capitalismo, cavar trincheiras, talvez relembrar os bons tempos quando os pensadores de esquerda eram cientificamente avançados e intelectualmente honestos.
Acredito que isto equivale ao equívoco de socialistas do século XIX de negar a segunda lei da termodinâmica porque ela aparentemente não era compatível com o Materialismo Dialético. Ou da rejeição, pelos marxistas russos do século XX, da “genética burguesa”, com a conseqüente destruição da agricultura soviética. Só que um equívoco numa escala infinitamente maior, que resultará em estagnação intelectual e fossilização do pensamento de esquerda. Se isto acontecer, a esquerda não terá conseguido se estabelecer como um sistema complexo adaptativo... Morrerá de inanição em seus guetos intelectuais e igrejinhas-partidos irrelevantes, devido à auto-exclusão das idéias que poderiam tê-la renovado e aprofundado. Por omissão, deixará que o século XXI seja conhecido apenas como o século do confronto entre capitalismo e fundamentalismo religioso. Será apenas uma observadora da História, em vez de fazer História. E, assim, do socialismo real e do socialismo imaginário não terá nascido um socialismo complexo...
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