O futuro da atividade científica depende de três fatores:
1. Que a ciência seja encarada como uma atividade benéfica para a sociedade.
2. Que a ciência possua charme (atração) suficiente para atrair jovens talentosos.
3. Que a ciência receba patrocínio suficiente.
Até meados do século XIX, ou seja, durante a maior parte da história da ciência moderna, o item 3 não contava com (muito) patrocínio estatal. A maior parte das pesquisas eram feitas por pessoas de posses (e que podiam apoiar estudantes e discípulos) ou apoiadas por filantropia.
No item 1 a ciência não estava mal até meados do século XX. Era encarada como uma das componentes do movimento geral de libertação do ser humano de tradições opressivas. Mesmo Marx e Engels erigiram sua crítica ao capitalismo e às propostas socialistas da sua época ("socialismo utópico" ou romântico) a partir de uma visão científica.
A ciência enquanto busca de explicações sobre o funcionamento do mundo (natural ou humano) não necessita de justificativas pragmáticas - no mesmo sentido que a arte enquanto busca do belo e do surpreendente não necessita de justificativas pragmáticas. Afirmar o contrário seria reduzir o conceito de arte ao mercado de arte, à industria da música ou do cinema etc. Ou seja, como dizia Feynman, "Physics is like sex. Sure, it may give some practical results, but that's not why we do it."
Entretanto, a partir de meados do século XX, um duplo movimento começou a sobreenfatizar as relações entre ciência e tecnologia, de uma maneira intelectualmente pouco honesta e carregando uma agenda muitas vezes não explícita.
O primeiro movimento é o dos tecnofílicos, ou seja, pessoas ligados de uma forma ou de outra à ciência aplicada, que em geral é cara por envolver muito tempo, gente e equipamentos. Para estes, a obtenção de financiamento passa por uma justificativa perante os governos na forma de que "a ciência é essencial para o desenvolvimento da tecnologia moderna". E como a tecnologia moderna é essencial para o poder (militar ou econômico), o financiamento da ciência fica justificado perante os governos, já que uma das funções destes é defender e ampliar o poder e influência de seus países. Isto seria análogo a dizer que os governos devem financiar o cinema por este ser uma indústria (antigamente era a sétima arte!) importante para promover a hegemonia cultural do país.
Essa justificativa da ciência produz uma separação e hierarquização entre as ciências: existe uma "ciência útil", que gera benefícios para o mercado ou para a sociedade e uma "ciência inútil", que não tem aplicações práticas. Entre as ciências inúteis estão, apenas para ficar dentro da física: a física matemática, a física de partículas, a astrofísica, a cosmologia e boa parte da física estatística.
Muitos cientistas (não tecnocientistas) embarcam nesse tipo de justificativa da ciência, quer em suas propostas de pesquisa para agências de fomento, quer perante o público e a mídia, mesmo que suas pesquisas não sejam aplicadas nem visem aplicações. Eu chamaria esse tipo de cientista de "cientista oportunista". Enquanto que os tecnocientistas estão corretos em sua afirmativa de que a tecnociência é essencial para o desenvolvimento da tecnologia moderna (isso parece ser um truismo), os cientistas oportunistas recorrem muitas vezes a falácias e outros desvios de conduta intelectual, a saber:
1. Promessas de aplicações a curto e médio prazo (especialmente na medicina), quando não está claro nem se haverá aplicações a longo prazo;
2. Uma ocultação proposital das dificuldades a serem vencidas até que um conhecimento científico vire tecnologia;
3. Uma defesa de que ciência básica é essencial (uma condição necessária) para o desenvolvimento tecnológico do país escondendo o fato de que não é uma condição suficiente. Por exemplo, se o país não tem infraestrutura industrial e empresarial para ser um (dos poucos) produtores mundiais de chips de computador, por mil fatores de mercado, dizer que o estudo de semicondutores no Brasil é essencial para o domínio dessa tecnologia é de certo modo falacioso (sim, é essencial, mas não é suficiente!).
Assim, por exemplo, tentar justificar o estudo de computação quântica usando o argumento de que um dia o Brasil será um produtor de computadores quânticos é não apenas falacioso mas desonesto. A verdadeira defesa, que todo cientista conhece, é que computação quântica é um assunto intrigante, desafiador, bonito, importante do ponto de vista do conhecimento científico (que é público) e não apenas do ponto de vista do conhecimento tecnológico (que é privado e sujeito a patentes).
O segundo movimento é o dos críticos da modernidade, ou seja, daqueles que defendem valores pré-modernos (não está claro se existem valores pós-modernos). Em geral são pessoas ligadas ao cultivo das humanidades e da alta cultura: historicamente são descendentes intelectuais da aristocracia, e na academia constituem uma aristocracia intelectual, mesmo quando possuem posições políticas de esquerda. Usando uma linguagem hermética e rebuscada, deixam transparecer em suas análises um certo esnobismo intelectual em relação aos cientistas, que seriam os equivalentes aos novos ricos, uma classe poderosa mas sem sofisticação.
Esta análise se confirma quando verificamos que a comunidade científica fez uma aliança com os puilares da modernidade, a burguesia ascendente, nos países capitalistas, e a buracracia estatal no socialismo real (agora ex-real). Demograficamente, vemos que a maior parte dos cientistas é recrutada entre estudantes filhos de trabalhadores: a aristrocacia e a burguesia mesmo prefere atividades mais nobres para seus filhos, como a política, o investimento capitalista, a advocacia, a medicina etc.
Os intelectuais anticientíficos postulam a mesma relação entre ciência e tecnologia que os tecnocientistas, e pelo mesmo motivo: afirmar que a ciência é essencial para a fundamentação do poder dentro da sociedade capitalista, e mesmo dentro de uma sociedade ocidental (definida pela tradição judaico-helenista) onde o conhecimento visa não o entendimento mas sim o domínio da natureza e da sociedade. Se assim é, a ciência seria (fundamentalmente?) responsável pelas mazelas sociais e ecológicas do mundo moderno.
Para quem não conhece, vale a pena dar uma olhada nas teses do movimento de anticiência, que seja
aqui na wikipedia inglesa . Pois os cientistas que defendem a importância da ciência moderna em termos de C&T (às expensas das relações entre ciência e cultura C&C, ciência e filosofia C&F , ciência e política C&P, ciência e arte C&A, ciência e religião C&R e até mesmo ciência e entretenimento C&E) estão na verdade fazendo um grande desserviço à causa da ciência: primeiro por fundamentar o postulado central da crítica anticientífica (o vínculo indissolúvel entre ciência e tecnologia na forma de uma tecnociência) e segundo por propagandear uma visão irrealista do potencial da ciência (que é bastante pequeno) para resolver os problemas médicos, energéticos e sociais de nossa sociedade. Quem promete muito e não cumpre será cobrado um dia, e a conta vai ser bastante alta...
PS: Quem realmente acredita no tal vínculo necessário e indissolúvel entre ciência e tecnologia que me explique para que serve a atual física de partículas, a astrofísica, a cosmologia e a paleontologia. Alguém acredita que encontrar o bóson de Higgs (que explicaria a origem da massa) vai nos permitir construir carros que levitam?
Foto: What is good science? What goal--if any--is the proper end of scientific activity? Is there a legitimating authority that scientists may claim? How serious a threat are the anti-science movements? These questions have long been debated but, as Gerald Holton points out, every era must offer its own responses. This book examines these questions not in the abstract but shows their historic roots and the answers emerging from the scientific and political controversies of this century.
Employing the case-study method and the concept of scientific themata that he has pioneered, Holton displays the broad scope of his insight into the workings of science: from the influence of Ernst Mach on twentiethcentury physicists, biologists, psychologists, and other thinkers to the rhetorical strategies used in the work of Albert Einstein, Niels Bohr, and others; from the bickering between Thomas Jefferson and the U.S. Congress over the proper form of federal sponsorship of scientific research to philosophical debates since Oswald Spengier over whether our scientific knowledge will ever be "complete." In a masterful final chapter, Holton scrutinizes the "anti-science phenomenon," the increasingly common opposition to science as practiced today. He approaches this contentious issue by examining the world views and political ambitions of the proponents of science as well as those of its opponents-the critics of "establishment science" (including even those who fear that science threatens to overwhelm the individual in the postmodern world) and the adherents of "alternative science" (Creationists, New Age "healers," astrologers). Through it all runs the thread of the author's deep historical knowledge and his humanistic understanding of science in modern culture.
Science and Anti-Science will be of great interest not only to scientists and scholars in the field of science studies but also to educators, policymalcers, and all those who wish to gain a fuller understanding of challenges to and doubts about the role of science in our lives today.
Comentários
Como você sabe, não concordo muito com sua posição. Você comentou um post meu sobre um assunto semelhante (http://brainstormers.wordpress.com/2008/11/21/a-utilidade-e-a-relevancia-na-pesquisa-universitaria/).
Concordo que muito do interesse na ciência é voltado a fins políticos e privados, mas acho que isto não tira o mérito da vinculação da ciência a suas aplicações (incluindo porém não limitadas a tecnologia).
Acho que a ciência, como empreendimento coletivo humano, tem o fim de servir a nós, de produzir utilidade, de tentar melhorar a vida humana (pelo menos em potencial). E é pragmaticamente sustentada pelo seu sucesso neste sentido, acho que ela não teria o apelo que tem se não tivesse possibilitado as tecnologias e aplicações clínicas que formaram nosso estilo de vida atual.
Enfim, acho que é importante sim que a ciência tenha uma utilidade externa a ela mesma, acho que seria um empreendimento um tanto frívolo e de valor meramente estético-intelectual se não servisse a mais nada do que a si mesma. E por esta razão acho que a pesquisa científica deve sim ser direcionada a aplicações.
Não acho que devamos ser autoritários e muito restritivos neste direcionamento, mas acho que é uma questão ética investir mais recursos no que se tem mais expectativas de trazer benefícios.
A pesquisa básica é importante, tanto para fundamentar a pesquisa aplicada (que depende dela para avançar), como para tentar responder a questões mais fundamentais que podem ser potencialmente muito mais importantes do que as pesquisas aplicadas (digamos, a descoberta do átomo, da eletricidade, do dna, da seleção natural, etc). Talvez se possa argumentar que mesmo questões fundamentais da curiosidade humana que não tem nenhuma aplicação possível aparente nem a longo prazo mereçam algum investimento, eu não descarto essa possibilidade, mas ainda assim, acho que tem uma prioridade relativamente baixa.
Só para responder ao seu desafio, acho que a paleontologia responde a questões importantes sobre a história evolutiva e é portanto importante para a verificação da teoria evolutiva das várias espécies conhecidas e assim do conhecimento biológico como um todo. Não vejo aplicações óbvias, a não ser talvez possíveis parques temáticos pré-históricos (heheh).
A astrofísica tem implicações importantes sobre nosso conhecimento do Sol e de outros corpos que possam interagir conosco no nosso futuro, além de permitir que se economize muito em pesquisa espacial empírica e inferir uma coisa ou outra sobre a constituição do nosso e dos demais planetas.
A cosmologia, creio eu, não tenha aplicações mesmo, a não ser responder a questão mais fundamental de qual é o propósito e a natureza do universo...
A física de partículas eu não conheço bem, mas imagino que permita se refinar os modelos de quais as particulas que constituem o universo e de como se comportam, e ainda que sejam pouco prováveis, instáveis, etc, me parecem guardar um potencial tecnológico muito grande caso seja possível manipulá-las de alguma forma.
Um de meus professores, Carlos Yokoi, me disse, quando perguntei para que servia o que ele estudava. "Graças, a Deus, nao serve para nada!" Japones de nascença, ele conhecia bem a fisica aplicada à Hiroshima e Nagasaki...