Cinismo científico e criatividade científica
Cínico: um canalha cuja visão errada vê as coisas como são e não como deveriam ser. - Ambrose Bierce
Um dos valores da ideologia científica é a objetividade: devemos evitar o wishfull thinking, ou seja, o pensamento desejante: devemos ver os dados dos nossos experimentos e das nossas observações pelo que "realmente" representam e não pelo que gostaríamos que representassem. Se eles constituirem evidência (forte) contra nossas crenças, devemos abandoná-las ou fazer um upgrade nelas.
Este ideal científico é um ideal comunitário, ou seja, espera-se que os cientistas enquanto comunidade sejam suficientemente objetivos para que um dia cheguem a um acordo comum sobre o efeito antropogênico das mudanças climáticas ou se cigarro causa câncer, por exemplo. O consenso não precisa ser total: se existirem uns poucos céticos cientistas sobre mudanças climáticas e relação cigarro-câncer, não tem problema, as pessoas podem ter as mais variadas motivações (políticas, financeiras, nascisísticas etc.) para assumirem essas posições. E, no final de contas, louco (mesmo ases em teorias de Supercordas) tem em todo lugar...
Entretanto, a objetividade científica não é um bom ideal para a pesquisa científica individual e a criatividade científica. Isso precisa ficar bastante claro para os leigos e para os estudantes. Na sua pesquisa individual, você como cientista vai defender certas idéias, se alinhar a certas escolas e correntes de pensamento, e seu objetivo é produzir evidências (que nunca são decisivas) a favor de suas idéias e, melhor ainda, evidências (que podem ser decisivas, já dizia Popper) contra as idéias das escolas ou cientistas concorrentes.
Ou seja, você tem toda uma bagagem de idéias preconcebidas sim, e é essa bagagem que vai lhe permitir algumas coisas como:
1. Ter persistência em obter um resultado mesmo quando o experimento não esteja "dando certo" ou argumentos teóricos contrários aparentemente refutam suas idéias.
2. Defender idéias novas quando não existe ainda evidências suficientes para que elas derrotem as concorrentes.
3. Ter intuições, "guesses", sobre o que você deveria obter no final dos seus cálculos ou dos experimentos, antes de realizá-los!
4. Desenvolver seu faro para novas combinações de idéias científicas.
Criatividade não é uma idéia surgir do nada por Fiat Lux (isso não existe, as idéias científicas são memes que evoluem lentamente na rede social). Criatividade é saber combinar idéias antigas em novas formulações (crossover), fazer mutações puntuais, fazer aplicações em novos nichos científicos e tecnológicos, etc. Se você faz cut and paste de uma ou duas fontes, você é um plagiador. Se você sabe fazer cut and paste de várias fontes, você é um criador (artístico ou científico).
Ou seja, criatividade (idéias venham de onde vier!) e persistência (frente a aparente refutação) são essenciais para que um estudante se torne bom cientista, mas são atitudes irracionais, não objetivas. Mais tarde, no jogo da comunidade, o valor dos frutos dessa critativade e persistência serão julgados (a maios parte das idéias novas é bobagem, errar é humano, persisitir no erro um tempo é científico -suas ideías precisam de tempo para amadurecer - mas persistir muito tempo no erro é bobagem também).
A visão contrária, de que a Ciência produz um conhecimento objetivo (que na verdade não significa "verdadeiro" mas apenas conhecimento público em vez de privado) devido a um suposto método científico baseado em indução (os dados experimentais determinam ou induzem a formulação de hipóteses e teorias na cabeça do cientista, e só isso deveria fazê-lo) foi refutada por historiadores, filósofos e sociólogos da ciência no século XX e os cientistas precisam aceitar isso. Na verdade todo cientista praticante, com uma pequena reflexão sobre sua própria prática, percebe que não é um empirista mas sim um Kuhniano com algo de Popper, Lakatos, Feyrabend, Laudan e outros, tudo misturado e contraditório na sua cabeça, porque cientista não é treinado para pensar de maneira clara e distinta como os filósofos... Não existe disciplina de Lógica, por exemplo, na graduação ou pós-graduação em Física - depois os orientadores ficam reclamando que a argumentação nas dissertações e teses não é lógica (ou seja, os alunos cometem falácias lógicas e estatísticas ad infinitum).
Resumindo, os dados empíricos são evidências a favor ou contra idéias e hipóteses que vão surgindo no processo da investigação mas se essa idéia foi "sugeriada pelos dados" (via ajuste de curvas experimetais, por exemplo), se surgiu num brainstorm na cafeteria da Universidade, ou durante um sonho, psicose ou alucinação induzida por drogas, é imaterial: a origem das hipóteses científicas é irrelevante para o jogo posterior do debate científico, jogo esse sim jogado no tribunal das evidências.
Ou seja, o método científicio é quase aquele mostrado na série CSI (Crime Scene Investigation), mas quando Grissom fica insistindo em que os fatos deveriam falar por si, que deveriamos evitar formular hipóteses) você deve dar um desconto: a série foi influenciada por essa visão empirista errada do método científico. E os enredos reconhecem que é importante sim ter desconfiômetro, intuições, e formular hipóteses de trabalho, mesmo sem evidências prévias, hipóteses baseadas muitas vezes em preconceitos - que são um condensado da experiência de vida dos detetives.
Ou como disse Poincaré (citação livre): "Os fatos científicos são como os tijolos de uma casa. Não se faz uma casa sem tijolos, mas uma pilha de tijolos nunca é uma casa."
E assim, o cínico científico de Ambrose Bierce seria aquele que em vez de desejar construir a casa e sonhar com sua planta, fica apena olhando e afirmando que tudo que existe no mundo é uma pilha de tijolos...
Comentários
Parabéns pelo post. Elucidativo e inspirador.
Renato.