Sobre o gnosticismo feminista
Um Matriarcado Cristão Antigo provado nos Textos de Nag Hammadi? De acordo com Brown, antes de Constantino e seus capangas reescreverem a Bíblia para torná-la patriarcal, “Jesus era o feminista original” (248). O Cristianismo adorava o “sagrado feminino” da “deusa perdida”, baseado no princípio supostamente antigo do “Cálice e da Lâmina” (237–8). Na verdade, O Cálice e a Lâmina é o título de um livro de 1987 da feminista Riane Eisler promovendo alegações especulativas de que a antiga Creta era supostamente “não-patriarcal”. E Eisler fundamentou sua tese, em grande parte, nas interpretações da falecida arqueóloga Marija Gimbutas, que no início de sua carreira construiu uma excelente reputação profissional, mas depois vagou por interpretações feministas extremas de “deusas” em desenhos e ícones antigos que foram rejeitadas quase universalmente pelos seus colegas. Na introdução para seu livro, Eisler explica o simbolismo de “gênero-holístico” do “Cálice e Lâmina”, o qual ela inventou junto com Gimbutas.[15] Assim não há nenhum modo pelo qual qualquer sociedade secreta antiga poderia ter usado o simbolismo do “cálice e lâmina”, porque esse simbolismo não existia antes de 1987.
Vários livros populares convenceram muitos de que a descoberta dos textos de Nag Hammadi provam a existência de uma versão com orientação mais feminista do Cristianismo Gnóstico antigo. O mais proeminente deles é Os Evangelhos Gnósticosde Elaine Pagels, uma estudiosa que de fato trabalhou no Projeto Nag Hammadi.[16] O livro de Pagels não é um trabalho explicitamente feminista, e contém muita informação valiosa sobre os textos de Nag Hammadi. Ela sugere que Maria Madalena foi inserida em alguns textos gnósticos como uma “figura” literária para ilustrar o conflito entre aqueles que queriam ampliar o papel das mulheres dentro da igreja contra aqueles que queriam restringi-lo, uma sugestão que faz muito sentido. Ela adverte a respeito de tomar estes evangelhos posteriores como tendo muito conteúdo histórico: “Os antagonistas em ambos os lados recorreram à técnica polêmica de escrever literatura que supostamente derivava de tempos apostólicos, professando fornecer as visões originais dos apóstolos sobre os assuntos”. Em outras palavras, muitos dos textos não-canônicos cristãos, gnósticos ou não, foram escritos por zelotes religiosos para demonstrar que “os apóstolos concordavam comigo”.
Muitos feministas citams Os Evangelhos Gnóstico para apoiar as alegações de que os gnósticos eram antigos feministas, uma reivindicação que em verdade não é embasada pelo texto do livro. Pagels escreve que “os gnósticos não eram unânimes em afirmar as mulheres—nem os ortodoxos eram unânimes em denegri-las. Certos textos gnósticos inegavelmente falam do feminino em termos de desprezo”. Porém, ela sim sugere que, no saldo final, as mulheres estavam um pouco melhor na Igreja Gnóstica do que na ortodoxa. Depois, escrevendo em outros meios populares, Pagels adotou uma forte posição feminista, alegando que o feminismo gnóstico teria sido “suprimido”.
Quão “feministas” os gnósticos realmente eram é difícil de concluir com certeza, e a conclusão de cada um dependerá de quais textos escolhe para se concentrar em e quais resolve ignorar. Em vários trabalhos gnósticos, Deus o Pai é elogiado e celebrado como “muito másculo”,[17] o que dificilmente agradará a feministas. No Diálogo Gnóstico do Salvador, Jesus dirige seus discípulos para “Rezar no lugar aonde não há nenhuma mulher” e urge que “os trabalhos da feminilidade” sejam destruídos.[18] A Sofia [Sabedoria] Gnóstica de Jesus Cristo diz “Estes são todos perfeitos e bons. Por estes o defeito foi revelado na fêmea”.[19] E o mais claro de todos, no Evangelho Gnóstico de Tomás, Simão Pedro diz, “Permita que Maria nos deixe, já que mulheres não são merecedoras da Vida”. Jesus responde, “Eu mesmo a guiarei para torná-la masculina, de forma que ela também possa se tornar um espírito vivo que se assemelhe a vocês homens. Uma vez que toda mulher que se torne masculina entrará para o Reino dos Céus”.[20] É óbvio que qualquer interpretação do movimento gnóstico como proto-feminista requer uma leitura extremamente seletiva de seus textos.
Os historiadores profissionais e arqueólogos rejeitam quase universalmente reivindicações feministas de culturas antigas feministas/adoradoras de deusas no mediterrâneo ou em outros lugares. (Veja Goddess Unmasked de Philip G. Davis para uma excelente avaliação da pouca fundação acadêmica na qual estudiosos feministas construíram tais alegações).[21] Todas as sociedades humanas conhecidas, no passado e no presente, são “patriarcais” no sentido em que a liderança formal tanto na sociedade como em casa é predominantemente associada ao homem. As aulas de “Estudos sobre o Feminino” alegam haver muitas exceções, mas essas não sobrevivem a um escrutínio crítico.[22] Isto não significa que nenhuma líder exista, nem nega que as mulheres tenham freqüentemente poder informal enorme não considerado por medidas formais.
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Do artigo A Perturbadora Persistência do Determinismo Social (2001):
Minha intenção, aqui, é mostrar como uma tomada de posição dogmática pró `causas determinantes sociais', principalmente quando relacionada aos transtornos psiquiátricos, pode ser muito perigosa neste tipo de debate `científico' ideologicamente polarizado. Tentarei enfatizar que, se idéias científicas são construídas socialmente, muito mais longamente construído é o caminho que vai de uma hipótese científica particular até suas possíveis consequências políticas e ideológicas.
Assim, se idéias científicas não possuem consequências ideológicas diretas e inevitáveis, se tais `consequências' são na verdade construídas socialmente (pela mídia, pelos intelectuais, políticos e cientistas), então parece ser mais promissor não só denunciar as motivações ideológicas dessas contruções mas também explorar leituras e implicações alternativas das mesmas idéias. É preciso evitar a armadilha de se ancorar posições éticas ou políticas na sobrevivência ou derrota de hipóteses científicas particulares.
Talvez um exemplo em forma de caricatura torne mais claro o que foi dito. Imaginemos que existisse uma esquerda acadêmica durante a Renascença e que esta, consciente de seus deveres de `vigilância' (patrulhamento?) da ciência a fim de denunciar suas consequências políticas perniciosas, acabasse por concluir que a nova física de Galileu e as idéias heliocêntricas Copernicanas representassem uma ideologia burguesa de dominação. Isto poderia ser fartamente documentado, seja pelo financiamento à ciência feito pela burguesia mercantil dos Medici, seja pelo uso dessa nova física na produção de armamentos (telescópios militares, análise balística etc.).
Poderia até acontecer que uma seita de freiras feministas denunciasse o profundo significado machista do Heliocentrismo. Antes, o centro do Universo era a Grande Mãe Terra, princípio feminino; agora, propunha-se a visão patriarcal de um Sol-macho central em torno do qual orbitariam os planetas-fêmeas (Vênus, Terra-Gaia), machos jovens (Marte, Júpiter etc.) e filhotes-satélites. O Heliocentrismo também poderia ser criticado por apresentar um certo ranço aristocrático: uma de suas consequências será `legitimar', séculos mais tarde, regimes autoritários como o do Rei-Sol Luis XIV...
Além disso, já que tanto o Geocentrismo quanto o Heliocentrismo constituem hipóteses necessariamente falíveis e transitórias (afinal, hoje sabemos que o Sol não é o centro do Universo) e uma vez que os epistemólogos já `demostraram' (sic) que as hipóteses científicas nada mais são do que receitas de cálculo que não refletem necessariamente uma realidade exterior independente do observador humano (conforme a epistemologia do Cardeal Belarmino), fica claro que a atitude `realista' e `intolerante' de Galileu só poderia ter origem em uma ideologia reacionária sexista. Tudo muito interessante.
E no entanto, a Terra se move...
O ponto é que tais `consequências' machistas, ideológicas etc. não decorrem diretamente do fato da Terra girar em torno de si e do Sol (em primeira aproximação), mas são construídas e elaboradas (consciente ou inconscientemente) pelas pessoas que as defenderam ou rejeitaram nesta situação imaginária. Implicações alternativas, em que se encarasse o Heliocentrismo como lbertário e o Geocentrismo como pensamento reacionário, oderiam ser (e historicamente foram) desenvolvidas. ssim, se nossos companheiros da `esquerda renascentista' acoplassem
seu projeto ético-político à defesa intransigente do Geocentrismo, isto seria não apenas um enorme equívoco estratégico mas também levaria a um triste e progressivo abandono de sua honestidade intelectual. Não adianta se negar a olhar pelo telescópio! A atitude de permitir-se o auto-engano desde que seja por uma boa causa traz péssimos frutos
a médio prazo.
Nota de Rodapé: No caso do debate sobre a influência genética sobre a personalidade, talvez um dos novos telescópios seja a possibilidade de clonagem humana, que de uma hora para outra tornou altamente testáveis as afirmativas sociodeterministas, irritando profundamente tanto os ambientalistas comportamentais quanto os ... reencarnacionistas! Reconhecer este fato não implica em nenhum endosso ético desse tipo de clonagem.
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