A serpente falante e a árvore da ciência, boa e má
Animado pelas investidas de Reinaldo Lopes de divulgar teologia para cientistas, reproduzo aqui um trecho de um livro que estou escrevendo (Deus e Acaso). Antes porém, você deve ler o post
Todo nerd é literalista? para uma introdução.
A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos que Iahweh tinha feito. Ela disse à mulher: "Então Deus disse: Vós não podeis comer de todas as árvores do jardim?” A mulher respondeu à serpente: “Nós podemos comer do fruto das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: dele não comereis, nele não tocareis, sob pena de morte.” A serpente disse então à mulher: “Não, não morrereis! Mas Deus sabe que , no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e sereis como deuses, versados no bem e no mal. "
Gênesis 3:1-5
O relato de Adão, Eva, o fruto proibido (que não era uma maçã!) e a Serpente no jardim do Éden é um dos mitos pervasivos de nossa sociedade, com ressonâncias desde na nossa moral sexual (o fruto proíbido sendo interpretado como o ato sexual) até a visão popular sobre os limites da ciência e da tecnologia. Com efeito, quantas e quantas vezes não vemos na literatura e nos jornais a expressão “os cientistas estão querendo brincar de Deus!”, atitude que supostamente deverá desencadear consequências maléficas e mesmo a maldição divina.
Segundo os pesquisadores bíblicos, o relato de Gênesis 3, que reflete tradições orais antigas, foi provavelmente redigido durante o reinado de Salomão (cerca de 970 até
Desde os primeiros contatos com os cananeus, percebe-se que a religião mosaica não consegue competir, em termos de atrativo e popularidade, com as religiões locais, especialmente o culto à Astarte, que tinha um caráter mais extático e popular, com seu lado de religião mágica e culto de mistério, sem uma ênfase específica em crítica social. Na verdade, como na maior parte das religiões ainda hoje, os sacerdotes, sacerdotisas, sábios e advinhos das religiões cananéias desempenhavam o papel de intelectuais orgânicos de sua sociedade, no caso as cidades-estado onde nobres e reis eram considerados “filhos de Deus” (ou deuses) e os párias, escravos e pobres em geral seriam os “amaldiçoados pelos deuses” ou pelo Destino. Um exemplo bíblico retratando esta situação se encontra no livro de Jeremias:
Mas tu, não intercedas por este povo e não eleves em seu favor nem lamentos nem preces, e não insistas junto a mim, por que não vou te ouvir. Não vês tu o que eles fazem nas cidades de Judá e nas ruas de Jerusalém? Os filhos ajuntam a lenha, os pais acendem o fogo e as mulheres preparam a massa para fazerem tortas à Rainha dos Céus; depois fazem libações a deuses estrangeiros para me ofenderem. Mas será a mim que eles ofendem?, oráculo de Yahweh. Não será a eles mesmos, para sua própria vergonha?(...) Sim, os filhos de Judá praticaram o mal diante dos meus olhos, oráculo de Yahweh. Eles colocaram suas Abominações no Templo, no qual o meu Nome é invocado, para profaná-lo. Eles construiram os lugares altos de Tofet no vale de Ben-Enon, para queimar os seus filhos e as suas filhas, o que eu não tinha ordenado e nem sequer pensado.
Jeremias 9:16-19, 30-31
Este texto mostra como a religião monoteísta dos “profetas de Yaweh” parece ser extremamente vulnerável, sendo facilmente esquecida e substituida pelas práticas religiosas das nações circunvizinhas. Ela parece ser por demais racional na sua crítica aos ídolos e a práticas religiosas consideradas como superstições descompromissadas com o ideal de justiça mosaico. Além disso, mais cedo ou mais tarde, a religião mosaica tendia a perder o suporte oficial do Estado, pois em vez de sacramentar e apoiar diretamente os reis, os ricos e a classe sacerdotal, na verdade era profundamente crítica deles e da vida urbana, pretendendo exercer uma atividade regulatória que minimizasse o pauperismo dos pequenos agricultores, pastores e operários.
Além disso, os cultos de fertilidade, que envolvem práticas rituais de casamento hierogâmico com prostitutas sagradas, tinham seus atrativos em termos especificamente sexuais, contrastando com o puritanismo da Lei Mosaica. É interessante notar que os cultos de fertilidade parecem ter sua sede principal não no campo mas nas cidades, que dependiam da produtividade ("fertilidade") do campo para se manter.
Isthar, além de deusa da fertilidade e do sexo, é também deusa da medicina e dos conhecimentos secretos, ou seja, da ciência e da tecnologia da época. Seu animal símbolo é a serpente, “o mais inteligente dos animais”, que controlava a medicina e a morte por sugerir a manipulação de drogas e venenos (esta é a origem da presença das serpentes no Caduceu de Hermes). O papel de destaque das mulheres neste culto da Deusa e da Serpente certamente está relacionado ao papel da mulher enquanto agente civilizatório, no desenvolvimento da agricultura, no processo de sedentarização urbana, no conhecimento de ervas, drogas e venenos. O desenvolvimento de tradições escritas nas cidades favorece também o registro e manutenção desse “conhecimento sagrado”.
Embora associado ao culto da Deusa-mãe, a Terra, devemos ter o cuidado de não idealizar o culto da Deusa-filha Ishtar como uma religião ecológica e pacífica (uma tendência do neopaganismo feminista atual que não possui base histórica). Ishtar é descrita, desde os registros mais antigos como O Épico de Gilgamesh, como uma deusa terrível:
Gilgamesh abriu sua boca e respondeu à gloriosa Ishtar: (...) Os seus amantes encontraram em você um braseiro que se apaga no frio, uma porta de trás que não proteje nem do vento nem da tempestade, um castelo que esmaga sua guarnição, um betume que enegrece as mãos do portador, um odre que molha o carregador, uma pedra que cai do parapeito, um golpe devolvido pelo inimigo, uma sandália que faz tropeçar quem a usa. (...) Quais de seus amantes você por acaso amou com constância? (...) Você amou o pastor do rebanho; ele fez tortas para você dia após dia, ele matou crianças para seu agrado. Mas você o feriu e o transformou em um lobo. (...)
Quando Ishtar ouviu isto ela caiu numa cólera amarga, ela subiu aos altos céus. Suas lágrimas cairam em fronte de seu pai Anu, e Antum sua mãe. Ela disse, “Meu pai, Gilgamesh lançou insultos sobre mim, ele contou sobre todo o meu comportamento abominável, meus atos loucos e secretos”. (...) Ishtar abriu sua boca e falou de novo: Meu pai, dê-me o Touro dos Céus para destruir Gilgamesh. Encha Gilgamesh , eu digo, com arrogância que o levará à sua destruição; mas se você recusar dar-me o Touro dos Céus eu quebrarei as portas do inferno e esmagarei suas dobradiças; haverá confusão entre as pessoas, aquelas acima com aquelas das profundezas. Eu levantarei os mortos para comer alimento como os viventes; e os hóspedes da morte serão em maior número que os vivos.
Anu cede a Ishtar o Touro dos Céus, que ataca a cidade de Uruk matando centenas de jovens. Gilgamesh e Enkidu, seu amigo, reagem e matam o Touro dos Céus.
Então Ishtar chamou os seus seguidores, as jovens que dançam e cantam, as prostitutas do templo, as cortesãs. Sobre as coxas do Touro dos Céus ela organizou uma lamentação.
Enkidu então é alvo de um ato de vingança por parte de Ishtar, morrendo em seguida de uma doença misteriosa, que lembra um envenenamento.
O carater não pacifista de Ishtar-Astarte se revela também em seu título de Deusa da Guerra. Ela é representada como uma guerreira comandando um carro de combate, portando o arco e flecha e uma capa protetora de pele de leão. Este aspecto da Deusa, porém, é coerente com a visão de que ela é a Deusa da Ciência e da Tecnologia (no caso, a tecnologia de guerra). A Deusa é a amante dos reis, sacramentando-os como escolhidos pelos Céus e lhes dando o poder científico e tecnológico para superar seus inimigos. Ela abençoa a economia (fertilidade agrícola e pastoril). Seus segredos são guardados pelos intelectuais da corte, as sacerdotisas, os sábios, os conselheiros, os escribas. A Deusa Ishtar é o símbolo da civilização urbana tecnológica e opressora. É a deusa central da principal potência militar da época em que o Genesis foi escrito, a Assíria (Ishtar é a patrona de Nínive, a capital do ímperio Assírio), império que o pequeno reino de Israel não conseguia enfrentar.
Fica claro, portanto, a natureza do relato da Queda: é uma parábola, um mito fundador, até mesmo um panfleto em uma luta ideológica contra as ideologias religiosas da super-potência da época (Império Novo-Assírio) que minam o projeto revolucionário de Moisés. Eva representa as mulheres judias que estavam se deixando seduzir pelo culto a Astarte, cujo símbolo era a serpente. Adão são os homens judeus que acompanharam suas mulheres neste processo. O “fruto conhecimento” são os ensinos esotéricos que prometiam aos praticantes se tornar como Deus.
A árvore da vida é a religião mosaica, a arvore do conhecimento é a religião cananéia, a única árvore cujo fruto era proibida por Deus, pois equivalia a abandonar o projeto mosaico. A perda do paraíso é a perda da utopia buscada por Moisés: uma terra de justiça onde mana leite e mel para todos. O resultado desse abandono seria uma vida de suor e trabalho em cidades-estados cuja estrutura social opressora era apoiada e sacralizada pela religião e pela ciência-tecnologia cananéias.
Naquela circustância histórica, ceder ao politeismo não era uma questão religiosa privada, como entendemos a religião hoje. É ceder a todo um sistema social injusto sacralizado de forma religiosa. É renunciar ao monoteísmo socialista de Moisés. Conflito aparentemente insuperável, e que acabou gerando reações violentas típicas de movimentos revolucionários.
Comentários
Renato.
http://scienceblogs.com.br/carbono14/2009/09/ceticismo_biblico_parte_1_ecle.php
Gostaria de colocar minha colher no assunto, que é vastíssimo, e muitas vezes incongruente com valores ditos reais e céticos.
A Bíblia em si mesma foi transplantada de uma tradução da Torah hebraica. A Torah constitui-se dos cinco livros chamados Tanakh. De acordo com a tradição judaica a Torah escrita e a Torah oral foram reveladas simultaneamente por Deus a Moisés no Monte Sinai. A Torah oral seria propriamente a maneira de ensinar o cumprimento dos mandamentos da Torah escrita. Algumas revelações sobre as tradições da Torah não coincidem. Há uma versão de que Moisés seria o seu autor mesmo antes do êxodo, portanto ainda em solo egípcio. Moisés teria tido a visão futura dos acontecimentos e da sua própria morte, transferindo todos os fatos dessa vidência para a Torah. Uma terceira versão confirma a existência da Torah antes mesmo da criação do mundo, formulada pelo Criador para a evolução humana. E ainda, a tradição judaica afirma ter Moisés revelado os fatos na sua essência, mas a compilação final da Torah se desenvolveria e tomaria forma posteriormente, através de outras pessoas.
Por outro lado, a tradição também dá conta de que a Torah viria somente ser revelada e difundida a partir de Esdras, portanto após o cativeiro da Babilônia, e por essa afirmativa histórico-religiosa não teria existido antes de Josias.
Tanakh ou Tanach, do hebraico, é uma sigla chamada acrônimo, construída a partir de outras palavras, designando um conjunto de livros sagrados reconhecidos como a Bíblia judaica. A sigla veio a ser formada das palavras: Torah ou Pentateuco, Nevim ou Livro dos Profetas e Kethuuim ou escritos. O Tanakh é também conhecido como Medra. Já o Mishná trata da compilação da Torah oral, redigida detalhadamente por volta de 200 d.C., orientada por Judá Hanasi.
Quanto a Adão e Eva, o simbolismo sexual da serpente é evidente pelo fato de a serpente representar a força do kundalini (sânscrito) a indicar que tanto Adão, (Adam Kadmon o Homem celeste caído no pecado), como Eva precisariam conhecer dos frutos do bem e do mal – a ciência universal. E a serpente - o fogo sexual - seria mais tarde, através do conhecimento, elevada a fim de purificar e redimir o homem pelo sexo sagrado. Essa idéia se faz presente em quase todos os cultos religiosos e sexuais da antiguidade, embora conspurcada.
Por oportuno, a ciência universal não se prende à matéria tão somente, mas também aos segredos da própria origem do Adão-Eva biológicos não como duas entidades isoladas, mas a pluralidade e suas descendências mais diretas, que se estenderiam por algumas poucas gerações. Daí, viria a humanidade mourejante no seu todo, formando raças e se espalhando pela Terra.
Meio verdades meio simbolismos herdados de um capítulo das lendas sumérias que muito antes de Moisés tinham alcançado o Egito.
O tema é extenso, pouco disse, mas vou parar por aqui.
Abraços,
Carlos Magno.