Deus e Acaso: um capítulo de um livro que está sendo escrito
Capítulo 1 - Como a Bíblia vê a Ciência e a Tecnologia?
Não devemos, porém, julgar uma civilização tão antiga segundo nossas próprias concepções, como faríamos se se tratasse de uma civilização contemporânea; as idéias–diretrizes, os móveis a que os Mesopotâmicos obedeceram diferem dos nossos; é no ponto de vista deles que convém nos colocarmos para melhor compreender as diversas manisfestações de sua atividade. Ora, o ponto de vista dos Assírio-Babilônicos, como o de todos os povos muito antigos, é puramente religioso. Todas as pequenas ocorrências da vida de cada dia esão dominadas por um princípio, o temor dos deuses. É, pois, a partir da religião, que conduziremos nosso estudo; veremos sucessivamente a arte, as leis e os costumes refletirem sua influência e servi-la. Essa dependência de toda uma civilização à religião não é excepcional nas épocas muito remotas, mas fato constante nas sociedades arcaicas.
Georges Conteneneau, “A civilização de Assur e Babilônia”.
Antes, porém, precisamos responder à seguinte dúvida legítma: podemos realmente falar em ciências na antiguidade bíblica, ou isto seria um anacronismo dado que as “verdadeiras” ciências teórico-experimentais só se afirmam a partir da Renascença ou mesmo mais tarde? Deveríamos restringir o termo Ciência para descrever apenas o conjunto de conhecimentos sistemáticos desenvolvidos de uma forma secular, não submissa a visões de mundo religiosas? Afinal, é bem sabido que a emergência do Direito, da Ciência, da Filosofia e da Ética enquanto disciplinas autônomas, a partir de uma matriz religiosa, é um desenvolvimento tardio e, mesmo hoje, não-universal[1]. Além disso, temos a tendência de considerar como “científicos” apenas os conhecimentos testados e tidos como “válidos”, “verdadeiros” ou “eficazes”.
Esta última atitude porém, é ingênua: existem muitos conhecimentos “válidos”, “verdadeiros” ou “eficazes” que não são científicos, conhecimentos que não são marginais mas sim indispensáveis à nossa sobrevivência: a culinária, o cuidado e educação de crianças pequenas, a jardinagem, a agricultura tradicional, o artesanato, boa parte das técnicas de engenharia, enfermagem e medicina. Na verdade, a medicina científica, com testes estatísticos rigorosos, de preferência duplo cegos, ou com um conhecimento biológico profundo que fundamente sua eficácia, é um desenvolvimento tardio que abarca apenas uma parte dos tratamentos médicos.
Por outro lado, temos vários exemplos de teorias “científicas” que não são hoje consideradas “verdadeiras”: a concepção de espaço-tempo newtoniana e a Mecânica Clássica[2], a teoria dos dois fluidos elétricos, a teoria do Flogístico[3], a teoria do Calórico[4], o Uniformitarismo geológico[5], a teoria do éter luminífero[6], a cosmologia de estado estacionário[7]. Na verdade, 90% dos trabalhos publicados em uma grande revista de Física, por exemplo, serão considerados ultrapassados, errados ou irrelevantes em cerca de trinta anos, e nem por isso seriam considerados como não científicos. Hoje, em pleno século XXI, sabemos que nossas principais teorias físicas, a Relatividade Geral e a Mecânica Quântica, são incompatíveis em seus fundamentos, de modo que uma futura teoria geral deverá superar ou uma, ou outra, ou ambas. Por enquanto, temos apenas teorias especulativas[8] parciais, tais como a Teoria de Supercordas[9], ainda cheias de problemas teóricos e que correm mesmo o risco de serem experimentalmente não-testáveis[10].
Assim, seguindo os historiadores das ciências (Holton,1998), acredito poder falar com propriedade de tradições científicas em cada civilização humana (por exemplo, Suméria, Egípcia, Chinesa, Babilônica, Hindu, Grega, Romana, Árabe etc.). Em maior ou menor grau, tais tradições intelectuais herdaram conhecimentos de suas antecessoras e interagiram[11] entre si, permitindo mais tarde a emergência de uma tradição científica multicultural, a ciência teórico-experimental moderna, a partir do processo de globalização iniciado pelas grandes viagens do século XV. Devemos resistir, porém, à tentação de ver nessa tradição intelectual internacional um simples fruto do colonialismo mercantil europeu. Afinal, a ciência árabe, que tem um caráter profundamente multicultural devido à herança greco-romana, persa e hindu, floresceu muito antes do que qualquer tipo de capitalismo mercantil ocidental.
Talvez o ponto unificador dessas tradições científicas antigas seja o fato de que eram cultivadas por uma classe de intelectuais que dominavam a linguagem escrita e o cálculo matemático: são os sábios e filósofos, muitas vezes sacerdotes oficiais ou membros das cortes reais, outras vezes apenas adeptos de cultos de mistério ou de magia natural. Lembremos que o termo “filósofo”, que primeiro aparece na filosofia pitagórica, se refere aos amigos (Filo) da Sabedoria personificada (Sofia), e possui um sentido iniciático e religioso.
Já as técnicas e a tecnologia, com seu know-how não formalizado, parecem ser primordialmente o campo de atuação de classes sociais intermediárias tais como arquitetos e artesãos, e mesmo de operários, escravos e mulheres, que exerciam as artes práticas e manuais. A história da Tecnologia é mais fácil de ser acompanhada, por deixar registro arqueológico independente do registro escrito. Na verdade, pode-se falar de tecnologia paleolítica, neolítica etc., e mesmo em uma tecnologia proto-humana e tecnologia não-humana.
Com efeito, se definirmos tecnologia como técnicas de fabricação e uso de artefatos transmitidas por vias de ensino-aprendizagem, em vez de apenas comportamentos instintivos, então várias espécies de animais possuem sua tecnologia própria: antropóides, macacos, elefantes, castores, papagaios, polvos, etc. Isso sem falar em “tecnologias comportamentais”, ou seja, técnicas de caça, comunicação, lavagem de alimentos e construção de ninhos que são passadas culturalmente entre os animais.
Assim, mais do que a tecnologia, parece ser a tentativa de criar conhecimento e ciência, na forma de relatos organizados acerca das origens e do presente estado do mundo, um dos traços dos distintivo do ser humano: homo sapiens sapiens, o húmus que sabe que sabe. A ênfase no valor do conhecimento levará a diversas formas de gnosticismo, quer religioso, quer secular. A Bíblia, enfatizará, porém, outro traço distintivo do humano: o animal profundamente social, que se relaciona com o seu próximo. A tensão, e por vezes a contradição, entre amor, justiça, sabedoria e conhecimento científico permeia os textos bíblicos.
[1] Consultado sobre o que pensava da Revolução Francesa, um ministro oriental disse: “Ah sim, estamos acompanhando com interesse”.
[2] Nas salas de aula, costuma-se enfatizar que a Mecânica Clássica ainda é uma boa aproximação para a dinâmica de corpos macroscópicos em baixas velocidades e campos gravitacionais fracos. Esta visão é inadequada: o Geocentrismo é eficaz pragmaticamente (sendo ainda usado na navegação) mas isto nada diz sobre a validade de seus fundamentos. Os fundamentos da Física Clássica são incompatíveis com os da Física Relativista e os da Física Quântica. Ver Thomas Kuhn, A Estrutura das Revoluções Científicas (1962).
[3] Teoria da combustão química baseada na idéia de que a a queima dos materiais implica na expulsão e queima de um fluído (o Flogístico). Foi testada e derrubada pelos experimentos de Lavoisier.
[4] Teoria da transmissão do calor através de um fluído (o Calórico). Foi derrubada pela Teoria Mecânica do Calor do Conde Rumford e posterior desenvolvimento da Termodinâmica Clássica.
[5] Teoria geológica de Cuvier, derrubada pela teoria das placas tectonicas de Wegner.
[6] Teoria que pretendia descrever a luz como uma onda propagando em um meio subjacente, o éter luminífero. Foi generalizada no século XIX para incluir todos os aspectos do eletromagnetismo e da propagação do calor radiante (radiaçao infravermelha). Foi tornada obsoleta pela teoria da Relatividade Restrita de Einstein.
[7] Teoria cosmológica concorrente da Teoria do Big Bang, propunha que a expansão cósmica seria compensada por uma criação espontânea de partículas, de modo que a densidade de matéria no Universo permanecesse constante.
[8] O leitor pode estranha a minha expressão “teoria especulativa”, dado o uso frequente do termo “teoria científica” para designar um sistema de hipóteses bastante testadas e com grande acumulo de evidência experimental ou observacional favorável. Meu uso desse termo se conforma ao uso corrente em Física: teoria é um conjunto logicamente coerente de idéias e hipóteses que visa explicar um conjunto amplo de fatos. Nesse sentido, podem existir “teorias científicas ainda não testadas” e “teorias científicas refutadas”. O adjetivo “científico”, longe de designar um método, indica basicamente que a teoria partilha uma certa tradição científica acumulada.
[9] Para uma introdução às teorias físicas contemporâneas, ver O Universo Vivo e The trouble with Physics, ambos do físico Lee Smolin.
[10] Como bom pós-poperiano, evito usar o termo “inverificável”.
[11] O desenvolvimento de tradições científicas independentes na África Sub-Saariana, nas Américas e da Oceânia mereceria considerações a parte.
Comentários
Imagine, *hoje* uma pessoa que defenda a teoria flogística...
[]s,
Roberto Takata
Recomendo de novo ler sobre os programas de pesquisa de Lakatos:
Ainda hoje existem pesquisadores que defendem idéias de universo de estado estacionário (com novos modelos, claro) e teorias newtonianas de gravitação (procure "MOND").
Então, a questão é: quando um programa de pesquisa pode ser considerado realmente superado. Às vezes esta questão não é fácil, como por exemplo em certas teorias neolamarkistas...
http://en.wikipedia.org/wiki/Imre_Lakatos
E podemos mesmo analisar os pesquisadores que se aferram ao modelo de estado estacionário. O próprio Hoyle em sua obstinação acabou se queimando, a despeito de outras importantes contribuições à astronomia e à astrofísica.
E sua observação parentética - "com novos modelos" - e o M de MOND - também são reveladores de que a questão é de outra ordem.
[]s,
Roberto Takata
http://www.lse.ac.uk/collections/lakatos/scienceAndPseudoscienceTranscript.htm
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[]s,
Roberto Takata