Ciência e Ideologia nos blogs de ciência


A comunidade científica é grande e diversa. Isso significa que seus membros possuem as mais variadas filosofias de vida e ideologias.


Entretanto, criou-se um mito em uma parte da blogosfera científica de que


A) Existiria uma "única" ideologia científica,


B) Essa única ideologia não é uma ideologia mas sim uma "cultura científica"


C) Nosso dever como divulgadores de ciência é divulgar tal tipo de cultura.


D) A cultura científica é idêntica ao (neo)ateísmo científico à lá Dawkins.


No post Dawkins vs Wilson, eu sugiro que existem "evidências empíricas" de que Edward O. Wilson:


1. É Deista em vez de neoateista (isso é uma declaração dele).


2. É um cientista muito mais produtivo e de maior impacto que Dawkins (por qualquer parâmetro de impacto e qualidade científica que se queira medir).


3. É um escritor de divulgação científica melhor de Dawkins, no sentido de que é um escritor com um (dois?) Pulitzer, é um escritor mais profundo, tem um estilo melhor e é um cientista ativo.


Assim sendo, é preciso explicar a anomalia, que não deveria ser esperada a priori, sobre a preferência de inúmeros blogueiros biólogos por Dawkins em vez de Ed Wilson. Será que aqui entra também um viés ideológico?


Isso não é um detalhe irrelevante, uma firula que só interessa à comunidade dos divulgadores de ciência. Acho que, em 2010, o tema Dawkins vs Wilson será fundamental. Explico:


Wilson propõe, em seu livro "A Criação", que secularistas e religiosos se unam por um propósito maior que é a conservação e defesa dos ambientes naturais, a busca de uma economia (mais) sustentável etc. Ou seja, para Wilson, a divisão importante hoje em dia não é se você é ateu ou religioso, direita ou esquerda, liberal ou conservador (nos costumes) mas sim se você é verde ou cinza.


Sendo assim, um ateu-verde-direita-conservador como Wilson pode colaborar com uma religiosa-verde-esquerda-conservadora como Marina Silva e com um ateu-verde-esquerda(?)-liberal como Gabeira, porque ser verde é mais importante que as outras coisas na presente conjuntura histórica.


Por outro lado, Dawkins, que é um ateu-cinza-direita-liberal, e seus seguidores no Brasil com mesmo perfil, não podem apoiar Marina Silva ou mesmo dialogar com ela, pois segundo Dawkins, um religioso "razoável" ou que tenta ser "racional" é pior que um religioso fundamentalista (ainda não entendi por que, me parece que apenas pelo fato de que os fundamentalistas são melhores "homens de palha" para serem atacados).


Assim como existe um amplo espectro político, me incomodam certas dicotomias filosóficas tipo ateu-teísta tão discutidos ultimamente (com os ateus militantes, que lembram igrejinhas de extrema esquerda, afirmando que agnósticos são ateus que ainda não saíram do armário e que religiosos que dão valor à Razão ou não são literalistas bíblicos etc ou são contraditórios ou não são verdadeiros religiosos (por que os verdadeiros religiosos são, ou deveriam ser, fundamentalistas) ou são irrelevantes numericamente (mas desde quando, em filosofia, conta-se números de apoiadores para se verificar a validade de uma proposta?).


O que existe, na verdade, é um espectro filosófico envolvendo a questão de se nosso universo teve uma criação proposital ou não por um ser finito ou não. Vejamos:


1. O Universo surgiu espontaneamente sem planejamento ou propósito algum


2. O Universo foi criado por um ser finito (um Demiurgo - nem onipotente, nem onisciente nem onibondoso, por exemplo, uma civilização em um Universo-Mãe) por acidente e não tem propósito algum.


3. O Universo foi criado por um Demiurgo de forma planejada, porém não tem propósito interno (poderia ser um experimento científico).


4. O Universo foi criado por um Demiurgo de forma planejada e possuí um propósito interno, por exemplo manter a vida, a consciência após a morte do Universo-Mãe, e produzir outros universos-bebês.


5. O Universo foi criado por um Deus Platônico (onipotente, onipresente ou onisciente, mas não bondoso) = Deísmo.


6. O Universo foi criado por um Deus Platônico-Cristão (o Deus dos Filósofos, como dizia Pascal, com a adição que seria bondoso para com a Vida ou pelo menos para com os seres sencientes).


7. O Universo foi criado por um deus tradicional com forte ênfase na "bondade" ou "defesa da justiça para os oprimidos", ou seja, um deus judaico-cristão primitivo hoje defendido pela Teologia da Libertação (acho que alguns teólogos da libertação vão discordar de mim dizendo que não subscrevem a visão tradicional de Deus, mas que para eles Deus é o Horizonte Histórico, Deus é o Amor, Deus é a Utopia etc). OK, fiquemos por aqui.


8. O Universo foi criado por um Deus tipo religião tradicional, tipo o deus judaico Yavé (sem os conceitos de teologia sistemática), ou seja, um Deus onde os conceitos de infinitude (oni-alguma coisa) são mais expressões pleonásticas do que descritivas (no mesmo sentido de que "O Palmeiras é o melhor time do mundo!"). Nessa categoria entrariam qualquer mitologia cosmologica tradicional, da mitologia sumérica (que deu origem ao relato do Gênesis) até as mitologias indigenas mais recentes - em geral as culturas não letradas possuem mitos orais que remontam a apenas 200 anos no máximo, embora tenhamos esse mito de que elas sejam imemoriais).


Ou seja, existe todo um espectro de possibilidades (e olha que eu ainda nem discuti o Panteísmo e o Panenteísmo (visão mais próxima do jovem Einstein). Ou seja, dado que a situação é essa, e que cientistas dos mais variados calibres subscrevem as mais diferentes filosofias (tanto em relação à questão do que define a ciência, se existe um método científico ou não, o que define a ética científica etc, mas também a essas visões cosmológicas), por que adotar uma visão unilateral e enviesada, por que adotar ou propalar a idéia de que a visão Dawkiniana é a "única" ou a "mais correta" visão científica?


Minha resposta é que tudo não passa de um momento político-ideológico muito particular. A crise da secularização desde a década de 60 (crescimento do pentecostalismo, crescimento do espiritualismo New Age, queda das repúblicas socialistas oficialmente atéias, ascenção das repúblicas islâmicas etc) implicou em que ateus e não-crentes se vissem como minoria (uma minoria que anteriormente se orgulhava de sê-lo - por se considerar uma elite). E, como toda minoria, viu seus direitos civis ameaçados (por lei religiosas, por influência política da religião, etc)


Ou seja, Dawkins é emblemático por iniciar uma militância atéia nos moldes da militância gay, por proclamar que era hora dos ateus saírem do armário.


Sabe aquele militante gay (ateu) chato? Aquele para o qual todos são ou gays (ateus) enrustidos ou são homofóbicos (religiosos fundamentalistas), sem meios termos?


Sim, é importante para os extremistas aniquilar o centro, dizer que o centro não existe, que os centristas são ideologicamente falsos.


Mas a questão, para o Brasil de 2010, é que os Ateus Verdes e os Religiosos Verdes, seja de esquerda ou direita, deveriam apoair Marina. E que a distancia entre um ateu-verde-esquerdista-liberal e um ateu-cinza-direitista-conservador é muito, muito, MUITO grande, não importa quão grande seja seu ateísmo...


Do O Beijo de Juliana:




Nas palavras de Monod:


Pela primeira vez na História, uma civilização tenta edificar-se, permanecendo desesperadamente atada, para justificar seus valores, à tradição animista e abandonando-a como fonte de conhecimento, de verdade. As sociedades “liberais” do Ocidente ainda ensinam, da boca para fora, como base de sua moral, uma repugnante mistura de religiosidade judeu-cristã, de progressismo cientista, de crença em direitos “naturais” do homem e de pragmatismo utilitarista. As sociedades marxistas professam sempre a religião materialista e dialética da História; quadro moral aparentemente mais sólido que o das sociedades liberais, mas talvez mais vulnerável, em virtude da própria rigidez que até aqui tinha feito sua força. Seja como for, todos os sistemas enraizados no animismo estão fora do conhecimento positivo, fora da verdade, são estrangeiros e definitivamente, hostis à ciência, que querem utilizar mas não respeitar e servir. O divórcio é tão grande, a mentira tão flagrante, que inquieta e dilacera a consciência de qualquer homem provido de alguma cultura, dotado de alguma inteligência e habilitado pela ansiedade moral que é a fonte de toda criação.

Às vezes penso que esse trecho de Monod está na raiz de toda a revolta dos humanistas românticos, de Roszack a Rubem Alves. É como se eles o tivessem lido quando jovens, acreditado que isso representa realmente a “posição da Ciência”, daí acendeu uma luz, uma revelação, e eles passam a dedicar suas vidas ao combate dessa “visão científica fonte de todos os males”, como o Império do Mal que Reagan combatia.

Mas eles, tão sofisticados, tão cheio de nuances, não conseguem perceber as diferenças políticas e filosóficas dentro da Ciência e da comunidade científica? Podem sim, mas não querem, porque se reconhecessem isso perderiam o seu “sentido de vida”, o seu ideal de luta, o seu bode expiatório particular que responde a todas as perguntas... Pois é, Monod, tão arrogante, acabou prestando a todos nós um belo desserviço, não?

oOo

Vocês deixariam sua filhinha ficar aos cuidados de um cara que acha que os humanos são máquinas e que as máquinas não possuem direitos? É por isso que esse ponto é essencial para mim: acredito que os humanos são máquinas biológicas (e incluo o comandante Data no gênero humano), mas defendo que as máquinas tem, em algum sentido a ser determinado melhor, “direitos naturais”. Por exemplo, o direito de não ser prejudicado ou destruído sem motivo justificável. O direito de qualquer configuração neguentrópica, por motivo de sua imensa raridade num universo composto de 99.99% de neutrinos, fótons, hidrogênio e hélio, de simplesmente continuar a existir como um tributo à complexidade. Mas essa visão ou opção valorativa (“não devemos usar a Mona Lisa como papel higiênico”), para Monod, é puro animismo.

Freeman Dyson conta:


Jaques Monod tem uma expressão para as pessoas que pensam como eu e para os quais reserva seu desprezo mais profundo. Chama-nos “animistas”, crentes em espíritos. “O Animismo”, diz, “estabelece um pacto entre a natureza e o homem, uma aliança profunda fora da qual parece estender-se somente uma terrível solidão. Devemos romper esse vínculo porque o postulado da objetividade assim o exige?” Monod responde que sim: “O antigo pacto encontra-se em fragmentos; finalmente, o homem sabe que está sozinho na imensidão inexorável do Universo, fora do qual emergiu apenas por acaso”. Respondo que não. Creio no pacto. Ë verdade que emergimos do universo por acaso, mas a idéias de acaso é em si mesma apenas um disfarce para a nossa ignorância. Não me sinto alienado no Universo. Quanto mais examino o Universo e estudo as minúcias de sua arquitetura, tanto mais prova encontro de que o Universo, de certo modo, deve ter sabido que vínhamos.



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