Alguns leitores me perguntaram minha opinião sobre a questão do aborto. Isso é motivado por alguns dados novos no cenário político-cultural, a saber:
1. Minha candidata, Marina Silva, não tem uma posição pró-choice na questão.
2. Os petistas Luis Bassuma e Henrique Afonso sofreram sanções do PT por defender uma posição similar à de Marina Silva. Ver blog de Henrique Afonso aqui.
3. Muitas pessoas progressistas socialmente, feministas etc. (exemplo, meu irmão Marcelo R. Kinouchi) estão em dúvida na questão do aborto. Explico: historicamente falando, a esquerda tem batalhado para ampliar a defesa dos direitos daqueles que não têm voz nem direitos. Assim, primeiro se defendeu os "direitos" (que não são direitos de pessoas jurídicas na época, elas nem eram consideradas "pessoas humanas integrais") dos escravos, dos negros, dos trabalhadores, das mulheres, dos índios, dos portadores de deficiências físicas, dos pacientes psiquiátricos, dos portadores de Síndrome de Down e outras formas de deficiência mental, das crianças, dos idosos e, mais recentemente, de seres não-humanos como grandes macacos, mamíferos sociais, animais de laboratório etc.
Ou seja, a flecha política da esquerda sempre apontou para a ampliação dos direitos e defesa dos (assim considerados em uma dada época) "sub-humanos" e "não-humanos", ou pelo menos, de pessoas que não cidadãos em termos plenos, juridicamente falando. Assim, o argumento de que o feto ainda não é uma pessoa humana não é um argumento válido para certas pessoas, por exemplo os vegetarianos que não comem camarão e os budistas que não pisam em formigas.
4. Parece ser contraditório que eu defenda ativamente os supostos "direitos animais" de cefalópodes e outros invertebrados e, ao mesmo tempo, fique quieto em relação aos fetos, que são vertebrados. O argumento de que o feto não é independente da mãe não se sustenta (no meu caso dos "direitos animais", uma vez que neste caso a mãe faz o papel de aquário para o cefalópode: o cefalópode também não tem a menor chance de sobrevivência fora do aquário.) OK, OK, estas considerações precisam ser melhoradas, mas vocês pegaram o espírito da coisa...
5. O debate sobre o aborto é, em grande parte, um debate importado dos EUA. Naquele país, configurou-se que o aborto é defendido pelos liberais e combatido pelos conservadores. Mas isso, em grande parte, é um acidente histórico. Em uma situação outra, é possível que os conservadores defendessem o aborto como prática eugenista e os liberais combatessem o aborto a fim de dar voz aos que não tem voz (os fetos).
Eu sou a favor do aborto porque acho que, na situação atual brasileira, é o menor dos males. Meninas e mulheres estão morrendo em clínicas de aborto clandestinas, as crianças indesejadas acabam sofrendo todo tipo de privação e abuso etc. Mas defender o "menor dos males" não é uma situação muito confortavel. Eu preferia defender algo mais alinhado com as outras causas ideológicas que defendo. E eu não tenho certeza se a questão do aborto é consensual mesmo entre as feministas petistas, quanto mais entre as feministas em geral ou entre as mulheres em geral.
Além disso, "a situação atual brasileira" pode mudar radicalmente (vide a queda avassaladora da taxa de fertilidade das brasileiras - os atuais 1,8% nas mulheres jovens - que irá trazer graves danos demográficos e econômicos para nosso futuro). Ou seja, defender o aborto como uma escolha individual da mulher é uma coisa, defender a legalização do aborto como uma boa política de combate ao crime ou controle populacional, pelo fato de que o aborto diminui o número de jovens favelados (como se faz no livro Freaknomics), é outra bem diferente...
Mas acho que o tema merece um debate maior, menos polarizado, quem sabe com um passo por vez. Por exemplo, acho que se poderia discutir proveitosamente a questão da "pílula do dia seguinte". Tais pílulas poderiam ser disponibilizadas melhor nas farmácias, ONGs feministas poderiam dá-las de graça às meninas (e não precisa ser no dia seguinte, claro!), assim como dão camisinhas e contraceptivos na época de Carnaval.
Em vez de fazer a pergunta genérica e capciosa "Você é a favor ou contra o aborto?", "Você é pró-Vida" ou "Pró-Choice", que tal perguntarmos: quais seriam as consequencias sociais, éticas e demográficas da liberação sem receita médica da pílula do dia seguinte? Acho que é uma questão mais simples, mais tratável. Em questões delicadas como o aborto, que tal darmos um passo por vez? Afinal, a tecnologia disponível em uma sociedade tipo GATTACA será realidade dentro de 20 anos ou menos... Eu eu não gostaria que as mulheres, por questão de mercado, abortassem seus fetos que tem potencial para se tornarem cientistas ou nerds, e escolhessem sempre fetos mais parecidos com o Brad Pitt...
PS: Idéias Cretinas discute a questão ética relacionada ao aumento de abortos de fetos com Síndrome de Down na Inglaterra e País de Gales. Ver aqui.
PS: O fato de Carl Sagan ter defendido o aborto no contexto norte-americano não implica que todo blogueiro de ciências progressista deveria fazer o mesmo. Existem ateus que são contra a legalização do aborto e existem religiosos a favor da legalização do aborto (por exemplo o Bispo Macedo da Igreja Universal é a favor da legalização do aborto, você sabia?)
oOo
Da Wikipedia:
Freakonomics
Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
O livro Freakonomics - O lado oculto e inesperado de tudo que nos afeta é uma coletânea de estudos do economista Steven Levitt, Ph.D. pelo MIT, em parceria com o jornalista Stephen J. Dubner. A obra defende teses polêmicas, entre elas a de que a legalização do abortoseria a grande responsável pela redução das taxas de criminalidade em Nova Iorque.
O próprio nome Freakonomics - que quer dizer algo como "economia excêntrica", segundo a responsável pela tradução da obra - contribui para que o livro mostre a que veio. Levitt tem uma linha de pensamento diferente da maioria dos economistas e, apesar de em Freakonomics ele seguir uma tendência tradicional atualmente em Economia – a de aplicar princípios econômicos às mais variadas situações da vida cotidiana – o livro não fica limitado a isso.
Situações cotidianas são confrontadas pelos autores, e idéias simples, convenientes e confortadoras, tidas como verdadeiras pela sociedade, são postas em dúvida.
No primeiro capítulo, as origens da corrupção são discutidas. No segundo, os autores debatem problemas decorrentes de assimetria de informação. No terceiro, levanta-se uma outra questão: por que os traficantes de drogas, apesar de estarem em uma atividade altamente rentável, ainda têm um baixo padrão de vida?
O quarto capítulo é o mais polêmico: é o que defende a tese de que o aborto legalizado seria o grande responsável pela diminuição da criminalidade em Nova Iorque, e não fatores como a existência de uma economia mais forte, o aumento do número de policiais, a implementação de estratégias policiais inovadoras ou as mudanças no mercado de drogas. Os autores argumentam que filhos indesejados teriam maior probabilidade de se tornarem criminosos, pelas condições precárias de vida a que estariam sujeitos durante sua criação.
A teoria sobre o aborto, por tratar de um tema tão delicado, é constantemente alvo de críticas. Levitt não se esquiva delas e sempre responde: "Eu penso que é exatamente assim que a ciência deve trabalhar, com teorias controversas sendo cutucadas e instigadas a provar sua robustez".
Levitt faz questão de deixar claro que não faz nenhum tipo de julgamento de valor a respeito da questão. Seu trabalho é desenvolvido do ponto de vista de um pesquisador que apenas tenta explicar os fenômenos que observa.
As críticas mais importantes ao seu trabalho vieram de outros cientistas:
Christopher Foote e seu assistente Christopher Goetz, dois economistas da Federal Reserve de Boston apontaram um erro relacionado aos dados utilizados, referentes ao número de prisões efetuadas no período estudado. O fato de Levitt ter usado o número total de prisões realizadas, ao invés do número de prisões per capita supervalorizaria a influência do aborto. Levitt, em tempo, reconheceu o erro e ajustou suas equações para os novos valores. Isto, porém, não reduziu tão drasticamente a influência do aborto: apesar de menor, continua existindo e é estatisticamente importante na redução da criminalidade.
Em Março de 2006 foi realizada uma conferência no American Enterprise Institute for Public Policy Research com Christopher Foote, John Donohue (co-autor do artigo científico de Levitt sobre o impacto da legalização do aborto na redução do crime) e outros economistas e cientistas a respeito deste trabalho.
Em minha opinião, a questão do aborto está intimamente ligada à questão da autonomia da mulher, em particular, e do ser humano, em geral, em ralação ao próprio corpo.
A analogia que me parece mais útil não é com animais, ou mesmo com as campanhas de emancipação (de escravos, mulheres, etc) mas com a doação de órgãos.
Digo, suponha que uma outra pessoa esteja morrendo e dependa de uma doação de fígado para sobreviver. Você tem um fígado compatível. O fígado é um órgão que se regenera -- se cortar um pedaço do seu, ele cresce de novo, e o moribundo só precisa de um pedaço, mesmo.
A doação seria um ato de nobreza? Sim. Seria elogiável? Sem dúvida. Deveria ser legalmente obrigatória? Não.
O mesmo se aplica à gravidez: levá-la a cabo pode ser algo muito bonito, corajoso, etc, mas a lei não deve forçar as pessoas a isso.
Carlos, achei a sua colocação relevante. Mas a analogia com a doação de orgãos deixa de ser verdadeira em algum momento da gravidez: 12 semanas? 16 semanas? No periodo em que o feto ainda não é capaz de sobreviver fora do corpo da mae, mas já tem um sistema nervoso funcionando, a analogia com os direitos animais ou os direitos de pessoas em coma (que também não são autonomas) começa a fazer mais sentido.
Então, a legislação precisa regulamentar isso, e o melhor mesmo seria um amplo debate na sociedade, um grande numero de propostas de leis com diferentes gradaçoes de legislação, talvez com um plesbicito no final, como propoe Marina Silva.
Carlos, seu argumento é dos melhores que já vi na posição pró-aborto, realmente dá o que pensar.
De qualquer forma, acho que a comparação com a doação de fígado não é tão equivalente assim, por alguns motivos:
1. Pressupõe-se uma ligação de responsabilidade entre a mãe e o feto, que não é de se ignorar. Não é aceitável o Estado me obrigar a pagar pensão alimentícia aos filhos dos outros (ou a dar esmola, por exemplo). No entanto, a coisa muda quando o filho é meu. Você acha que isso está errado?
2. Não é permitido que um médico extraia um fígado de alguém para salvar a vida de outra pessoa. Igualmente, não se poderia permitir que o médico matasse o feto a pedido da mãe. Pelo seu argumento, no máximo a mãe não sofreria sanções por tentar abortar. Assim como não se prenderia um desesperado que matasse alguém para conseguir um fígado. Terceiros arbitrarem a quem vão beneficiar é mais complicado.
Osame, a analogia com a doação de órgãos me parece válida mesmo depois que o feto se torna capaz de sofrer -- e ainda depende da mãe. Afinal, esse é o caso do adulto moribundo: ele está lá, está doente, precisa da doação para sobreviver.
André, eu diria que a relação de responsabilidade entre pais e filhos não é automática ou irrestrita: por exemplo, um casal pode decidir entregar a criança para adoção, momento a partir do qual a obrigação de sustentar o bebê deixa de existir.
Também acho que a pensão é uma analogia que não dá conta da complexidade da relação entre mãe e filho: uma coisa é mandar-se um cheque uma vez ao mês para alguém -- outra, aceitar uma transformação profunda de sua biologia, sua vida, seu lugar no mundo.
São, com o perdão da palavra, "penas" muito diferentes.
De fato não é irrestrita, mas é uma responsabilidade bem relevante. Não sei ao certo como é o procedimento para entregar um filho para adoção, mas convenhamos que isso é bem diferente de deixá-lo passar fome. Está-se apenas transferindo a responsabilidade. Seria o equivalente a transplantar o embrião para outro útero, o que a nossa tecnologia ainda não permite.
As responsabilidades pós-parto seriam uma discussão à parte. Estamos contrapondo uma gravidez de noves meses ao direito à vida do embrião. A gestação pode até -- às vezes, nem sempre -- ser bastante complicada do ponto de vista psicológico, mas não acho que seja uma "pena" objetivamente tão grave assim. E não faltam exemplos de deveres que podem ser psicologicamente dolorosos às pessoas.
A discussão está de alto nível e interessante. Eu nunca tinha pensado com muita profundidade sobre esse assunto do aborto.
Eu não disse que num dado quadro ético (Utilitarismo, por exemplo) o aborto faz pleno sentido. Peter Berger defende, no livro Vida ética, que a eutanásia de bebês recém nascidos, especialmente dos bebes deficientes e de meninas, no caso em que os pais nao quiserem assumir a criação do bebê, também é uma opção filosoficamente coerente, e só não é adotada por preconceitos religiosos. Em outras culturas (indigenas, greco-romana, chinesa, etc) era uma opção éticamente viável.
A questão é que existem outras correntes éticas seculares, por exemplo, aquelas ligadas à defesa dos "direitos dos animais", e que nesse contexto, a questao do aborto é mais complicada.
Exemplo: Uma blogueira de ciencia que frequenta este blog não come Camarão porque acha que matar qualquer ser vivo não é justificavel (note-se que ela é uma vegetariana ateísta, não é influenciada por idearios budistas).
Bom, o feto é biologicamente, pelo menos, como um camarão. Logo segundo este contexto da minha amiga, ela teria que pensar duas vezes antes de abortar.
Ou seja, o que estou colocando é que a discussão do aborto depende de axiomas éticos e filosóficos que, como todo axioma, não são decidíveis cientificamente.
Desculpe, eu quis dizer Peter Singer, filósofo da Etica de Princeton. E na primeira frase, eu queria dizer que o aborto (e mesmo a eutanásia de bebes) faz pleno sentido dentro de certas correntes éticas (inclusive certas correntes éticas religiosas, por exemplo, as que admitem a reencarnação). Afinal, se o espirito é imortal, um aborto não é tão grave assim... o suposto espirito reencarnante pode muito bem se reencarnar em outro corpo mais disponível para o ato...
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A analogia que me parece mais útil não é com animais, ou mesmo com as campanhas de emancipação (de escravos, mulheres, etc) mas com a doação de órgãos.
Digo, suponha que uma outra pessoa esteja morrendo e dependa de uma doação de fígado para sobreviver. Você tem um fígado compatível. O fígado é um órgão que se regenera -- se cortar um pedaço do seu, ele cresce de novo, e o moribundo só precisa de um pedaço, mesmo.
A doação seria um ato de nobreza? Sim. Seria elogiável? Sem dúvida. Deveria ser legalmente obrigatória? Não.
O mesmo se aplica à gravidez: levá-la a cabo pode ser algo muito bonito, corajoso, etc, mas a lei não deve forçar as pessoas a isso.
Então, a legislação precisa regulamentar isso, e o melhor mesmo seria um amplo debate na sociedade, um grande numero de propostas de leis com diferentes gradaçoes de legislação, talvez com um plesbicito no final, como propoe Marina Silva.
De qualquer forma, acho que a comparação com a doação de fígado não é tão equivalente assim, por alguns motivos:
1. Pressupõe-se uma ligação de responsabilidade entre a mãe e o feto, que não é de se ignorar. Não é aceitável o Estado me obrigar a pagar pensão alimentícia aos filhos dos outros (ou a dar esmola, por exemplo). No entanto, a coisa muda quando o filho é meu. Você acha que isso está errado?
2. Não é permitido que um médico extraia um fígado de alguém para salvar a vida de outra pessoa. Igualmente, não se poderia permitir que o médico matasse o feto a pedido da mãe. Pelo seu argumento, no máximo a mãe não sofreria sanções por tentar abortar. Assim como não se prenderia um desesperado que matasse alguém para conseguir um fígado. Terceiros arbitrarem a quem vão beneficiar é mais complicado.
André, eu diria que a relação de responsabilidade entre pais e filhos não é automática ou irrestrita: por exemplo, um casal pode decidir entregar a criança para adoção, momento a partir do qual a obrigação de sustentar o bebê deixa de existir.
Também acho que a pensão é uma analogia que não dá conta da complexidade da relação entre mãe e filho: uma coisa é mandar-se um cheque uma vez ao mês para alguém -- outra, aceitar uma transformação profunda de sua biologia, sua vida, seu lugar no mundo.
São, com o perdão da palavra, "penas" muito diferentes.
De fato não é irrestrita, mas é uma responsabilidade bem relevante. Não sei ao certo como é o procedimento para entregar um filho para adoção, mas convenhamos que isso é bem diferente de deixá-lo passar fome. Está-se apenas transferindo a responsabilidade. Seria o equivalente a transplantar o embrião para outro útero, o que a nossa tecnologia ainda não permite.
As responsabilidades pós-parto seriam uma discussão à parte. Estamos contrapondo uma gravidez de noves meses ao direito à vida do embrião. A gestação pode até -- às vezes, nem sempre -- ser bastante complicada do ponto de vista psicológico, mas não acho que seja uma "pena" objetivamente tão grave assim. E não faltam exemplos de deveres que podem ser psicologicamente dolorosos às pessoas.
Eu não disse que num dado quadro ético (Utilitarismo, por exemplo) o aborto faz pleno sentido. Peter Berger defende, no livro Vida ética, que a eutanásia de bebês recém nascidos, especialmente dos bebes deficientes e de meninas, no caso em que os pais nao quiserem assumir a criação do bebê, também é uma opção filosoficamente coerente, e só não é adotada por preconceitos religiosos. Em outras culturas (indigenas, greco-romana, chinesa, etc) era uma opção éticamente viável.
A questão é que existem outras correntes éticas seculares, por exemplo, aquelas ligadas à defesa dos "direitos dos animais", e que nesse contexto, a questao do aborto é mais complicada.
Exemplo: Uma blogueira de ciencia que frequenta este blog não come Camarão porque acha que matar qualquer ser vivo não é justificavel (note-se que ela é uma vegetariana ateísta, não é influenciada por idearios budistas).
Bom, o feto é biologicamente, pelo menos, como um camarão. Logo segundo este contexto da minha amiga, ela teria que pensar duas vezes antes de abortar.
Ou seja, o que estou colocando é que a discussão do aborto depende de axiomas éticos e filosóficos que, como todo axioma, não são decidíveis cientificamente.