Ciência e Religião 2.0


Ontem apresentei a versão bastante mudada da palestra "Ciência e Religião", curso de difusão cultural aqui no DFM-FFCLRP-USP. A versão 2.0 em PDF pode ser encontrada aqui.

Está ficando cada vez mais claro que um grande problema para a Divulgação Científica, especialmente no caso dos blogs opinativos, é como se situar dentro da polarização ideológica entre neo-teístas (por exemplo os cientistas ganhadores do prêmio Templeton) e neo-ateístas (Dawkins, Dennet, Harris etc).

Uma coisa curiosa que noto é que a grande maioria dos novos teístas são físicos enquanto que a maioria dos novos ateístas são biólogos. Para provocar meus amigos biólogos, menciono uma frase de John D. Barrow em um debate com Richard Dawkins: "Richard, o problema com você é que você não é um cientista. Você é um biólogo."

Eu tenho uma solução provisória que seria a de os jornalistas de ciência e blogueiros terem uma abordagem crítica e informativa, com maior profundidade histórica e filosófica, desmitificando argumentos dos dois campos.

Por exemplo, quando criticamos a Teoria da Terra Jovem (literalismo bíblico), acho que uma melhor idéia não é apenas apresentar as evidências que a contradizem (isso seria o nível básico da informação científica) mas também mostrar que a Teoria é irrefutável pois equivale à Teoria da Matrix = este mundo é uma ilusão criada por um Deus tecnológico, uma grande simulação que poderia ter se iniciado não apenas há 6.000 anos atrás, mas sim há 6 dias atrás... Este tipo de teoria meio solipsista é irrefutável e portanto não científica a priori.

Do mesmo modo, o mito de que cientistas teriam sido mortos ou torturados pela Inquisição precisa ser desmitificado. É um mito inventado pelos iluministas do século XVIII como propaganda mas não possui a menor base histórica. Por exemplo, Giordano Bruno não era um cientista, nem exatamente um livre-pensador, mas sim um mago renascentista que via no Heliocentrismo o sinal de uma Nova Era onde o culto ao deus Sol egípcio Aton iria derrubar o cristianismo. Foi condenado por suas opiniões teológicas (que configuravam opiniões político-ideológicas) e não exatamente por suas opiniões científicas.

Outro exemplo é o caso Galileu, ver aqui, que os historiadores modernos consideram uma anomalia nas relações Igreja e Ciência (porque na época a Igreja patrocinava fortemente as pesquisas científicas e as artes em geral). Galileu era bastante sarcástico e acabou granjeando muitos inimigos dentro e fora da Igreja, mesmo entre universitários seculares. Alguns desses inimigos formam um complô para prejudicá-lo, e o meio para isso na época é denunciá-lo por heresia.

Deve-se lembrar que o Tribunal da Inquisição só tinha autoridade sobre católicos confessos (como era o caso de Galileu) e a discussão sobre o Heliocentrismo no caso Galileu era se ele tinha o direito de ensiná-lo como teoria comprovada ou como teoria especulativa. O cardeal Belarmino tinha uma visão instrumentalista da ciência (como a maior parte dos cientistas hoje) onde uma teoria científica é um modelo da realidade, mas não uma visão com acesso direto à realidade. Já Galileu era um realista convicto, pré-Kantiano.

Galileu afirmava que o Heliocentrismo estava comprovado (mas naquele momento realmente ainda não estava, pois não havia eliminado explicações e teorias alternativas). Sua versão do Heliocentrismo era empiricamente deficiente: órbitas circulares em vez de Keplerianas, que produziam previsões empíricas piores do que o sistema Ptolomaico. E a falta de efeitos de paralaxe nas estrelas (uma previsão do Heliocentrismo) parecia constituir uma forte evidência contra o modelo.

A natureza dos fenômenos astronômicos observados pelo telescópio também não era clara, pois ele não tinha uma teoria de como o telescópio funcionava (tópico bastante discutido por Thomas Kuhn): ou seja, para os céticos da época (o pessoal das universidades) o telescópio seria como uma máquina Kirlian cujas fotos "provariam" a existência da aura (o que não é o caso...). Também os céticos hoje não ficam perdendo seu tempo com máquinas Kirlian. A presença de efeitos de distorção cromática não ajudava muito seu caso: como distinguir os fenômenos reais das ilusões de ótica?

Uma coisa que aprendi esses dias foi que, na verdade, o principal fator que impediu a aceitação do Heliocentrismo foi a reputação de Ticho Brahe como astrônomo e sua defesa do seu modelo híbrido geocêntrico. Foi Ticho que também chamou a atenção da falta de paralaxe estelar como argumento contra o Helicentrismo. Esse fator, pelo que conheço do meio universitário, parece bastante plausível...

O esclarecimento de certos mitos e inverdades históricas seria um tema interessante para a Divulgação Científica. Lembro como achei um absurdo Marcelo Gleiser afirmar em seu primeiro livro que o Aristotelismo dominou o Ocidente por mil anos, dado que Aristóteles só foi redescoberto no Ocidente através da tradução dos trabalhos do filósofo árabe Averroes no século XIII.

E assim vai... Que tal este desafio, amigos blogueiros? Em nossos posts, nunca mostrasmos um conhecimento de história da ciência inferior ao que pode ser encontrado facilmente na Wikipedia? Acho que esse é o nível mínimo que podemos estabelecer para nós mesmos...

Comentários

Gostei do texto!
Queria falar sobre o congresso de agosto... vc pode me mandar a página dele? O que é? Você gostaria que eu encontrasse algum blogueiro de Portugal para ir?
Osame Kinouchi disse…
Exato, e claro gostariamos que vc estivesse conosco também em Buzios (11-12 de setembro, não agosto).

Mauro Rebelo vai mandar o projeto para o CNPq na semana que vem, mas precisamos definir o gasto em passagens aéreas. por isso seria importante contatar rapidamente um blogueiro portugues com uma visao global da blogosfera portuguesa, e que seja Prof. Dr. de preferencia (facilita as coisas com o CNPq).
Digno de nota fora a cobertura insossa da imprensa e a reação maluca de ativistas ao atual Papa da igreja romana, quando comentou sobre Galileu ter perdido debates. Ora, ele citou uma frase (ou pelo menos, msm que citara de forma independente, foi igual a frase) do Paul Feyerabend, nada cristão, discutindo sobre o uso das ferramentas ad hoc. Nada disso foi falado.
Osame Kinouchi disse…
O papa citou a frase de Feyrabend sim, não foi coincidencia. A defesa que o papa faz da Igreja resistir à modernidade se baseia nos argumentos da filosofia pós-moderna. Me parece que a tese de doutorado dele é sobre Heiddegger, e todos esses filosofos são discipulos ou disciplulos dos discipulos do filósofo nazista.

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