Eu primata


Singularmente primatas

Por Carlos Vogt

Do Com Ciência:

A novidade que estudiosos da área apresentam é que o comportamento “moral” observado em animais na natureza pode ser produto da cultura e não puro instinto e herança genética como se acreditava até recentemente. Sabe-se, hoje, que animais não humanos são solidários, fazem sexo também por prazer, são capazes de raciocínio lógico e inteligência, conseguem transmitir conhecimentos – a base da cultura – e, portanto, têm uma cultura. São fatos fascinantes, sejam as estratégias de guerra mostradas nos documentários que focam o mundo animal, sejam as ocorrências de quebra de regras em favor da empatia, mesmo que se saiba, o tempo todo, que tanto a preocupação com o sofrimento alheio quanto a união de esforços na realização de determinadas tarefas são muito importantes para a preservação do grupo.


Por outro lado, a constatação de que os pilares da moralidade humana, a solidariedade e o altruísmo, também se manifestam largamente nos animais, traz uma nova visão da construção dessa moralidade, não mais determinada pela cultura, para controlar nossos instintos animais, mas sim inerentes à nossa constituição animal. São descobertas que causarão, senão uma revolução, pelo menos muita marola nos divãs dos psicanalistas e, quiçá, de outras áreas da ciência.

Sensação do momento como obra modelo de popularização da ciência, ou divulgação científica, o livro Eu primata: porque somos como somos, publicado recentemente no Brasil pela Companhia das Letras, foi destacado como “livro notável” pelo New York Times, em 2005. Frans de Waal, o autor, é holandês, biólogo, trabalhando atualmente nos Estados Unidos, e é um dos mais importantes primatólogos do mundo e seu principal objeto de estudo são as estratégias de resolução de conflitos e inteligência social em primatas. O livro descreve detalhadamente as grandes diferenças entre chimpanzés e bonobos e traça paralelos entre o comportamento social desses primatas e de humanos, destacando alguns indivíduos, de uma espécie e de outra, em histórias por vezes hilariantes, e outras terrivelmente violentas.

Marcando a diferença, diz que: “chimpanzés resolvem questões de sexo usando poder e bonobos resolvem questões de poder usando sexo”, e que humanos fazem uma coisa e outra. Propõe, fundamentalmente, que nossa moralidade não é fruto de nossa cultura, que a aprimora ou modifica, mas sim da empatia em relação ao outro. Com a bagagem de anos de observação e estudo, afirma que os primatas têm uma cultura, ou seja, que os comportamentos observados não são apenas instintivos e sim decorrentes de aprendizado. Dentre as observações destacam-se as estratégias de reconciliação e também as de ataque, sempre com histórias que emocionam.


Por outro lado, e paradoxalmente, pela empatia mais evidente nos bonobos, e a reciprocidade presente no comportamento dos chimpanzés, podemos perceber que “nossa moralidade é resultado do mesmo processo seletivo que determina nosso lado competitivo e agressivo”, que a hierarquia é fator fundamental de construção da democracia e que nossa moral tem gosto de sangue. O autor reforça, ainda, que Darwin tinha a convicção de que a ética nasceu dos instintos sociais e o quanto o criador da Teoria da Evolução seria contra o darwinismo social, sabendo que nem sempre são os mais fracos e ineptos que perdem ou desaparecem mesmo no mundo dos animais ditos irracionais.


Mas, para os pessimistas, uma má notícia: Frans de Waal consegue provar que nossa vocação para a guerra é, na verdade, muito menor que nossa vocação para a paz, que somos campeões em construir a paz, apesar da constatação de que “na guerra os humanos ultrapassam a violência dos chimpanzés e na paz as relações intergrupais são bastante mais ricas do que entre os bonobos”. Descreve cenas de reconciliação depois de brigas entre chimpanzés, perguntando-se se, de fato, o perdão e a bondade são características humanas ou tendências naturais entre animais cooperativos e com memória. Por outro lado, em vários momentos somos lembrados de quão terrível e abjeto pode ser um animal, humano ou não, quando violento e cruel, em situações que o autor, mesmo com esforço e disciplina científica, não consegue ser imparcial. São descrições de cenas de violência extrema, inclusive infanticídio, que nos remetem às atrocidades humanas, infelizmente e inclusive da atualidade.

(...)

“As emoções pessoais são cruciais. Combinadas ao entendimento de como nosso comportamento afeta os outros, elas criam princípios morais. Essa é a abordagem de baixo para cima: da emoção ao senso de eqüidade. É o oposto da idéia de que a eqüidade foi uma noção introduzida por homens sábios (fundadores de nações, revolucionários, filósofos) após uma vida de reflexões sobre o certo, o errado e o nosso lugar no universo. As abordagens de cima para baixo, que começam uma explicação pelo produto final, quase sempre são erradas. Perguntam por que somos os únicos a possuir eqüidade, justiça, política, moralidade etc, quando a verdadeira questão é quais são os tijolos da construção. Quais são os elementos básicos necessários para construir eqüidade, justiça, política, moralidade etc? como o fenômeno maior derivou do mais simples? Assim que refletimos sobre essa questão, torna-se óbvio que temos em comum com outras espécies muitos dos blocos construtores. Nada do que fazemos é realmente único”. (pág. 260)


“Assim, a profunda ironia é que a nosso mais nobre conquista, a moralidade, tem laços evolutivos como nosso mais torpe comportamento, a guerra. O senso de comunidade requerido por aquela foi fornecido por esta”. (pág. 262)


“O fato de o bem comum nunca se estender além do grupo se explica porque as regras morais raramente mencionam o lado de fora: as pessoas sentem-se autorizadas a tratar os inimigos de modo inimagináveis para os de sua comunidade. Aplicar a moralidade além dessas fronteiras é o grande desafio de nossa época. Criando direitos humanos universais – mesmo para nosso inimigos, como faz a Convenção de Genebra – ou debatendo a ética para o uso de animais, aplicamos fora do grupo, e mesmo até fora de nossa espécie, um sistema que evolui das razões intragrupo. A expansão do círculo moral é uma empreitada frágil. Nossa maior esperança de sucesso são as emoções morais, pois as emoções são desobedientes. Em princípio a empatia pode vencer qualquer regra sobre como tratar os outros”. (pág. 263)


Assim, os animais, que têm também, como os humanos, preferências sexuais, vivem culturalmente a regulação de seus comportamentos – mesmo que mais os públicos do que os privados. Se isso relativiza o papel da cultura para os humanos, relativiza também a força da natureza para os animais. Ou, como escreve Frans de Waal: “A natureza humana pura é como o Santo Graal: eternamente procurada, mas nunca encontrada”.

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