O meu dia-a-dia?


O tema da Roda de Ciência deste mês é sobre o "dia a dia do cientista". Embora no final do mês eu vá prestar um concurso aqui na USP, acho que tenho algum tempo para refletir sobre esse tal dia a dia no qual já vivo (meu Deus, tô ficando velho!) há mais de 20 anos.

OK, na verdade não tenho tanto tempo para refletir assim: além de estar estudando e preparando os pontos para o concurso, estou escrevendo um paper com o Mauro Copelli e o Leonardo Lyra Gollo sobre dendritos excitáveis, outro com o Roque, Rosa, Pedro e Adriano sobre modelos de evolução cultural (na verdade, sobre evolução da culinária), e ainda outro com o Pablo Diniz e o Alexandre Martinez sobre redes de citações bibliográficas. Sem falar na orientação de iniciação científica do Zeddy (trabalho para o Prêmio Jovem Cientista) , do Leonardo Soares (estudo de uma métrica de rede para definir sinonímia) e do Rodrigo (modelo de evolução de memes tipo branching process).

Ainda bem que consegui validar no Júpiter-USP, ontem, as notas da turma de Física I e de Estatística Básica. Hummmm.... Não falei sobre o fato de que preciso ir passear com as crianças no parquinho, amanhã, ou então levá-los para Araraquara no final de semana. OK, OK, já deu pra ter uma idéia sobre o meu dia a dia...

Vamos continuar. Mas primeiro, um pouquinho de arrogância: para definir o "dia a dia do cientista", acho melhor definir o que é um cientista. E aqui vai a opinão de pessoas que respeito: "cientista é um artesão que trabalha com idéias e conceitos".

Se forem idéias matemáticas ou lógico-formais, temos matemáticos, lógicos, teóricos da computação. Se forem idéias sobre a natureza e/ou o ser humano, temos os cientistas naturais e/ou humanos (notaram o "e" que inclui o pessoal da sociophysics como eu, por exemplo?).

Se tais artesãos trabalham com as mãos, temos os cientistas experimentais. Se trabalham com simulações computacionais, temos os cientistas computacionais. Se usam apenas lápis, papel e lata do lixo, temos os teóricos (ok, eles usam computadores também!). Se não precisam de latas de lixo, temos os filósofos... Ops, a piada não é minha, e eu não concordo com ela!

Cadê a arrogância da definição de cientista? Bom, acho que você pode chegar para mim e dizer: Olha, eu conheço um monte de cientistas que não são tais artesãos (manuais ou intelectuais). Isso é uma visão idealizada da ciência, etc e tal. Você não viu o último livro de sociologia da ciência do Bruno Latour?

Meu filho, você não entendeu: quem não se encontra dentro da definição, pode ser um técnico científico, um trabalhador científico, um professor de ciências, um administrador científico, um empreendedor científico. No problem. Apenas não é um cientista... (minha amiga Giulia diz que, enquanto professores-pesquisadores mal remunerados, somos um proletariado cognitivo).

OK, então dado que, enquanto pesquisador não ligado à Big Science, sou um artesão e não um operário no sentido marxista do termo, um artesão que tenta ensinar sua arte a seus (até agora poucos) discípulos, talvez valha a pena contar como se inicia uma vocação como essa. Tive que fazer isso no memorial a ser apresentado para a banca, no concurso que se aproxima. Coloco a seguir a parte inicial, memorialista, do mesmo:


Em que momento começa a se formar a trajetória de um futuro pesquisador? Acredito que em geral isso de dê muito prematuramente, entre 10 e 12 anos. Na fase posterior da adolescência, talvez a maior preocupação do jovem se refira a questões de socialização escolar (ou seja, namorar!). Se isto for verdade, então o reconhecimento de que o gosto pela ciência se desperta cedo deveria ter impacto em políticas educacionais para o reconhecimento da vocação científica.
Devido a esta crença, passo a relatar minha experiência pessoal, alguns acontecimentos precoces que afetaram minha futura trajetória acadêmica e intelectual.
Alguns fatos marcantes balizaram minha vocação para a atividade científica. Talvez o fato mais antigo que me lembre é o clima de novidade e interesse despertado em todos os meninos da minha idade pela descida da Apolo 11 na Lua em 1969, cuja divulgação televisiva assisti aos seis anos e meio de idade.
Em seguida, em 1970, o aparecimento do cometa Bennett causou-me bastante impressão e interesse por temas de Astronomia. Acredito que meu pai compartilhava de interesses científicos, pois me lembro que começamos a colecionar os fascículos Os Cientistas, da Editora Abril
[1], que foram publicados a partir de maio de 1972. É interessante registrar que, em conversas com outros colegas de minha geração, os mesmos também reconheceram a forte influência dessa coleção em sua futura vocação profissional.
Em 1976 registrou-se o aparecimento do cometa West, o mais espetacular cometa da década. Como eu apresentava grande interesse por astronomia, já possuindo uma pequena biblioteca sobre o assunto, meu pai decidiu comprar-me um telescópio refrator (aumento máximo de 120 x). A partir desta data meu principal passatempo foi realizar observações astronômicas, algumas delas sistemáticas, como registros de manchas solares e posição dos satélites Jovianos.
Mais um fator na minha formação foram as intensas leituras durante a adolescência, em particular de livros de ficção científica e livros de divulgação científica, mas também obras literárias e enciclopédias. Embora nem todo cientista goste de ficção científica, tenho verificado que os leitores de ficção científica mostram grande interesse pela ciência em geral, e tal fato poderia ser usado para promover uma maior atração pela ciência entre crianças e jovens. Como uma curiosidade, observo que Duncan J. Watts revela em seu livro Six Degrees que a novela The Naked Sun, de Isaac Asimov, inspirou diretamente sua pesquisa em parceria com S. H. Strogatz e que resultou no modelo de rede de mundo pequeno, modelo este que inaugurou uma nova fase na pesquisa de redes complexas e que é uma de minhas linhas de pesquisa atuais.
Outro fator que acredito ser relevante em minha formação, por ter uma ligação direta com minha pesquisa atual, foi o treinamento intelectual que tive ao inventar jogos de tabuleiro para meus irmãos. Foram dezenas deles, inventados dos 13 aos 18 anos, e que me deram uma aguda noção da necessidade de um balanço equilibrado entre chance, determinismo e minimização do conjunto de regras para se obter jogos interessantes.
Esclareço melhor: durante esta fase aprendi que jogos que usam apenas probabilidades (como corridas geridas por sorteio de dados) são triviais e logo perdem o interesse. Do mesmo modo, jogos que envolvem inúmeras regras para determinar cada evento se tornam arbitrários e complicados demais. Acredito que já nessa época tive uma visão clara de que os jogos mais interessantes se situam numa espécie de balanço crítico entre tais fatores: devemos minimizar o número de regras e maximizar o número de histórias (trajetórias) diferentes que o jogo pode apresentar.
Acredito que esta noção é similar àquela que motiva muitos físicos estatísticos (inclusive eu) a estudar modelos simples que possuem riqueza em termos de comportamento dinâmico. De certa forma, modelos físicos podem ser pensados como jogos sem jogadores, jogos que seguem regras probabilistas ou deterministas de forma automática e que tentam simular fenômenos da Natureza.
[Eu acrescentaria aqui que tentar determinar o conjunto de regras do Xadrez assistindo campeonatos ("observação") ou jogando contra grandes mestres (talvez o Deep Blue) ("experimentação") é uma ótima analogia para descrever o processo científico.]

[1] Retiramos as seguintes informações do texto “A trajetória da Editora Abril – 1968 - 1982”, de Matheus H. F. Pereira, Em questão, 11: 239-258 (2005), Porto Alegre.
Através da existência de um documento privado sobre uma coleção – Os cientistas: a grande aventura da descoberta científica – consegue-se perceber a dinâmica da editora e da produção em fascículos. Essa fonte visava à comercialização da obra no exterior e contém detalhes sobre a produção editorial (The scientists, 1972). Afirma-se que cada número de Os cientistas era formado por três partes, a saber: fascículo, kit e manual de instruções. A coleção completa era constituída por 50 fascículos e cada um era colocado nas bancas a cada 15 dias, desde 30 de maio de 1972. O primeiro número sobre Isaac Newton continha um kit com experiências sobre as leis do movimento. Os fascículos, depois de removida a capa, poderiam ser encadernados para formar uma coleção de três volumes, que seria comercializada nesse formato também.
Os fascículos eram constituídos de 16 páginas internas mais quatro capas, totalizando 20 páginas impressas, em quatro cores. A terceira e a quarta capa possuíam uma aba adicional, para que o fascículo embalasse o kit. Cada fascículo tinha aproximadamente 24 ilustrações, a maioria em cores, cobrindo quase 45% da área impressa. A pesquisa iconográfica teria sido feita em vários países e aproximadamente 40% do material nunca teria sido publicado. A coleção completa tinha mais de 1.200 ilustrações. Os textos de Os cientistas foram escritos sob supervisão de professores ligados à USP.

Comentários

Kynismós! disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
Osame Kinouchi disse…
OK,Kyn, feito! Putz, acho que esta eh a primeira vez que vc me elogia, isso já valeu o dia!
Kynismós! disse…
Ué, se eu achar que merece elogio mesmo, idem para as críticas, o que não gosto é de puxa-saquismo.

Mas estão faltando alguns dias-a-dias para serem consertados... :P
cipexbr disse…
Olá, fiz um blog específico para ajudar a uma campanha para o retorno dos cientistas. Fique a vontade para visitá-lo. http://oscientistas.wordpress.com/
atencisamente,
Carlos

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