Cérebros culinários
OK, OK, o paper da culinária foi rejeitado, tentarei agora submetê-lo ao Physical Review E. Mas destaco abaixo esta notícia para os engraçadinhos que acham que culinária é um assunto de importância científica inferior (será isso um ranço sexista?)
Do blog Visões da Vida dr \reinaldo José Lopes, no G1:
Vida de macaco, pode acreditar, não é brincadeira. Ao pensar nos símios, a gente logo imagina os bichos descascando tranqüilamente uma banana e mastigando a guloseima. Acontece que, sem plantações gerenciadas por humanos por perto, os bichos são obrigados a deglutir coisas como esta ao lado.
Sim, ISSO aí em cima é uma BANANA. Ou ao menos uma banana em sua versão ancestral, antes que a invenção da agricultura a transformasse no acompanhamento perfeito para a farinha láctea. As outras frutas que os primatas precisam encarar na natureza não são muito melhores. Eis aqui as palavras do bioantropólogo americano Richard Wrangham, que não me deixa mentir. “As frutas típicas da dieta dos chimpanzés são muito desagradáveis, muito fibrosas, bastante amargas. O efeito geral delas é que você não vai querer comer mais de duas ou três antes de sair correndo para tomar um copão d’água e dizer: ‘Esse não foi um experimento agradável. Espero não ficar doente’. Contêm pouco açúcar, e algumas fazem seu estômago revirar”, declarou ele à revista “Scientific American”. O malfadado teste levou Wrangham, que trabalha na Universidade Harvard, a uma conclusão inescapável: nossa espécie precisou inventar a culinária para chegar aonde está hoje.
Para ser mais exato, argumenta o bioantropólogo, só o uso do fogo para tornar os alimentos palatáveis teria sido capaz de proporcionar aos nossos ancestrais remotos a comida de alta qualidade que alimentaria seus cérebros sedentos de energia. Cozinhar, segundo essa perspectiva inovadora, estaria longe de ser a cereja do bolo (com o perdão do trocadilho) da nossa humanidade. Pelo contrário: primeiro teríamos virado chefs para só depois darmos um salto de capacidade mental. Wrangham ainda não conseguiu provar sua hipótese, e algumas peças do quebra-cabeça traçado por ele não se encaixam (mais sobre isso daqui a alguns parágrafos). Mas a idéia de uma humanidade eminentemente culinária tem diversos pontos intrigantes a seu favor, como veremos a seguir.
Miolos famintos
Como já tive a ocasião de mencionar algumas vezes nesta coluna, nossos cérebros são órgãos sequiosos de energia. Uma comparação entre massas iguais de tecido cerebral e tecido muscular revela um consumo 22 vezes maior de energia no cérebro. O mais lógico é que essa mesma densidade de energia requerida pelo cérebro esteja presente na densidade de energia da comida que o alimenta.E aí começam os problemas. Quando a nossa massa encefálica não era muito maior que a de um chimpanzé (situação que perdurou até cerca de 2 milhões de anos atrás), não era tão limitante assim usar uma dieta relativamente pouco nutritiva. Há 1,7 milhão de anos, contudo, surge o ancestral humano conhecido como Homo erectus – uma criatura cujo cérebro tinha quase o triplo do tamanho do cérebro de um chimpanzé, e cujos dentes sofreram uma redução considerável se comparados aos dos hominídeos mais antigos. Algum fator importante permitiu que o cérebro do Homo erectus crescesse e seus dentes encolhessem. A pergunta é: qual?
Existe uma correlação bem conhecida entre o tamanho proporcional do cérebro de primatas e as dimensões de seus intestinos. Como o organismo nunca dispõe de recursos ilimitados, parece haver uma “escolha” (obviamente inconsciente) entre investimentos de energia. Ora, intestinos volumosos são, em geral, uma necessidade quando é preciso digerir alimentos relativamente pobres em proteínas. Quanto a isso, os dados recolhidos por Wrangham não mentem: até os mais vegetarianos entre os caçadores-coletores de hoje têm uma dieta com, no máximo, 10% de fibra não-digerível. Já os chimpanzés têm de enfrentar 32% de fibra não-digerível no seu cardápio, o qual se compõe basicamente de frutos (60%), folhas e uma pequena quantidade de carne crua.
Se um Homo erectus tivesse de alimentar seu cérebro descomunal (ao menos para padrões chimpanzescos) com a mesma dieta, teria de obter três quilos de comida por pessoa ao dia, além de gastar SEIS horas diárias mastigando tudo isso antes de engolir. Não é um estilo de vida muito viável, para dizer o mínimo.
A coisa muda radicalmente de figura se o dito hominídeo aprender a cozinhar, no entanto. Uma série de alimentos se tornam incrivelmente mais fáceis de mastigar (basta comparar uma mandioca crua com outra cozida para saber do que eu estou falando). E, mais importante, muito mais fácil de digerir. Tomemos como exemplo a proteína animal, explica Wrangham: no formato cru, ela tende a se organizar de forma rígida, com uma estrutura ordenada que atrapalha a ação dos sucos digestivos. Ao ser cozida, seu estado natural de desorganização desaparece. É como abrir uma brecha nos muros de um castelo: fica menos difícil invadi-lo.
Resumindo a ópera, Wrangham aposta que o domínio do fogo como instrumento de cozimento disponibilizou, de forma quase instantânea, uma quantidade vasta de nutrientes para os ancestrais do Homo erectus. A fartura recém-adquirida tirou os hominídeos da encruzilhada entre cérebros e intestinos: agora, sobrava energia e não era mais preciso investir tantas tripas em obtê-la. Cérebros maiores, portanto, tornaram-se viáveis e, quando mutações ligadas a essa característica deram as caras, foram selecionadas e passadas adiante. Cadê o fogo que estava aqui?
Apesar da série impressionante de “encaixes” biológicos por trás da idéia, o que ainda não está claro é se o uso controlado do fogo é mesmo tão antigo quanto o Homo erectus. Os pesquisadores ainda batem cabeça em relação às evidências dessa tecnologia. Há quem veja indícios de fogueiras controladas no leste da África de 1,6 milhão de anos atrás – o que funcionaria relativamente bem para Wrangham.
Muita gente, no entanto, ainda contesta essa data. Por enquanto, a mais antiga data aceita para uma fogueira feita por mãos hominídeas vem do norte de Israel e corresponde a apenas 800 mil anos – uma época em que o Homo erectus talvez já estivesse desaparecendo da África e do Oriente Médio. Por mais saborosa que seja a hipótese de Wrangham, ainda falta o ingrediente final.
PS: Se a evidência mais antiga de fogueira é de 800.000 anos, dado que ela é fruto de uma amostragem sobre uma quantidade de eventos bastante rara (fogueiras fósseis potencialmente encontráveis pelos cientistas), então podemos concluir que certamente existem fogueiras mais antigas. quanto mais? Idéia: plote o número N(t) de fogueiras fósseis encontradas até hoje em função do tempo, considere a probabilidade p de uma fogueira fossilizar, faça uma extrapolação para o passado. Acho que não seria dificil dobrar a antiguidade das fogueiras...
Comentários
Sobre o assunto em si, me parece mais razoável assumir um modelo mais fluido pra evolução. O homem começou a beneficiar a comida dele, foi ficando mais esperto e isso foi ajudando ele a cozinhar melhor.
Sem contar a ajuda do monolito negro, passo fundamental da evolução humana :-P.