Poemas iterados e avalanches coevolucionárias


Criei meu próprio poema e o submeti ao processo iterativo de tradução ida e volta. No inglês não foi promissor, mas no francês ficou interessante. Talvez o processo fique interessante em linguas afins (latinas, por exemplo) de modo que o tradutor acabe usando sinônimos de significado ambíguo e metáforas, "criando" assim novos significados. Veja o que você acha.

Versão original (chamei o poema de "Cinco Sentidos"):

Quando eu penso em você
Lembro do seu perfume
Seu perfume me traz lembranças
Quando eu penso em você

Quando eu penso em você
Sinto a sua pele
A sua pele me faz sentir
Quando eu penso em você

Quando eu penso em você
Escuto o seu riso
Seu riso me faz sorrir
Quando eu penso em você

Quando eu penso em você
Gosto do seu sabor
O seu sabor me faz gostar
Quando eu penso em você

Quando eu penso em você
Vejo os seus olhos
Os seus olhos me fazem ver
Quando eu penso em você



Agora a versão depois de quatro iterações português-francês-português (em vermelho as mudanças produzidas):

Quando penso em você
Lembre-se, o seu perfume
O perfume dela se lembra
Quando penso em você

Quando penso em você
Penso que a sua pele
Sua pele me faz sentir     (
foi deletado A...)
Quando penso em você

Quando penso em você
Eu ouço o seu riso
Seu sorriso me faz rir
Quando penso em você

Quando penso em você
Gosto do seu gosto
Ela gosta de mim
Quando penso em você

Quando penso em você
Eu vejo os teus olhos
Seus olhos me fazem ver    (
foi deletado Os... )
Quando penso em você


Me parece que o processo de tradução melhorou o poema em algum sentido (deixou-o mais enxuto, mais econômico, e com sentidos mais metafóricos), em especial na terceira estrofe onde no poema original duas palavras "riso" ficam muito próximas, e no segundo verso da quarta, onde "gosto do seu gosto" parece ser mais interessante do que "gosto do seu sabor". E nos versos "Penso que a sua pele"  e "Ela gosta de mim" aparecem novos significados que não constavam do poema original...

O que acham? Dado que o Google translator parece ter essa dinâmica de compatibilização de palavras (rumo a uma construção linguística correta), ele não parece ser apenas um introdutor de desordem, como eu havia dito antes. 

E acho que só agora entendi o que o Nestor queria dizer em seu comentário: introduzindo um ruído (uma palavra deslocada do contexto), isso poderia induzir uma deriva dinâmica até uma nova configuração estável e significativa, ou seja, rumaria para um novo equilíbrio. 

Engraçado que talvez exista na biologia um processo similar de tradução genoma -> expressão -> mecanismos de seleção -> genoma da próxima geração, de modo que as espécies representem pontos fixos dessa dinâmica. Assim, uma mutação em um gene poderia desencadear todo um processo de desestabilização do genoma (ele não seria mais um ponto de equilibrio no processo genoma -> tradução -> população - > genoma), convergindo após várias gerações em um novo ponto de equilíbrio bastante afastado. Ou seja, ilustrei com meu poema a idéia da evolução por equilíbrio puntuado... 

Em vez de interpretar o modelo Bak-Sneppen como descrevendo a co-evolução de espécies num ecossistema, acho que também se poderia interpretá-lo como descrevendo a co-evolução de genes dentro do genoma. As reconfigurações do genoma de uma espécie seria feita na forma de avalanches em todas as escalas. 

Após uma grande avalanche, rápida em tempos geológicos, teriamos uma espécie bastante mudada, bem distante da original (como meu poema mudou bastante depois de quatro iterações).  As espécies intermediárias, assim como os poemas intermediários, são estados instáveis e eu só posso ver as espécies (os poemas) que já se estabilizaram. Os "elos perdidos" seriam os passos intermediários invisíveis de uma avalanche evolucionária e nós nunca iremos observá-los...

Comentários

Léo disse…
Você está usando o google translator, né? Eu estive brincando com este tradutor e tive a impressao que uma traducao de um texto de uma lingua A para uma lingua B era dado pela traducao de A para inglês e de inglês para B, o inglès seria hub. Se isso for verdade, uma interaçao do português com o francês, como você mostra, teria uma interaçao com o inglês escondida. Deveriamos esperar uma convergência mais lenta nesse caso?

Do ponto de vista artistico a questao de desprezar elementos intermediários (elos perdidos) é muito importante. Qual seria a motivaçao para usar um simples tradutor para determinar o ponto fixo? Segundo o filme, perguntaram a Pollock como ele sabia que tinha terminado um quadro, ele respondeu com uma outra pergunta: como você sabe que terminou de trepar?

Talvez essa técnica seja útil para alunos que querem copiar trabalhos ou relatórios, sendo possível alterar as palavras sem mudar muito o significado, ao invés de entregar já pronto uma cópia encontrada no "Zé Moleza".

Nessa linha, tem também o fabuloso gerador de lero-lero. Poderiam desenvolver pra relatórios do cnpq também, né?! Sobraria mais tempo pra blogar...
Unknown disse…
Sim, tive a mesma impressão. Parece que sempre passa pelo Ingles...

Quando tiver tempo farei o experimento sugerido pelo Nestor Caticha:

1. Escrevo uma frase longa.
2. Sorteio uma das palavras e a mudo por um sinônimo
3. Verifico quantos iterações são necessárias para chegar a um novo equilibrio
4. Vou fazendo esse drift genetico
5. Vou verificando se a frase perde a coerencia ou se novas frases significativas aparecem
6. Acho esse algoritmo genetico interessante, pois toca na questão da semântica, nao apenas da sintática
7. Será que nosso cérebro não faz um algoritmo genetico deste tipo quando quer gerar frases? Numa escala de tempo super rápida? Essa é uma idéia de Changeaux, que poderia ser implementada neste sistema

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